A pandemia não escancarou nada: nós é que estávamos cegos.


Com a pandemia do coronavírus, muitas pessoas acreditaram que as medidas de isolamento e distanciamento social poderiam proporcionar uma grande mudança a médio e longo prazo na sociedade, com a adoção de novos hábitos de consumo, o desenvolvimento da empatia e um novo olhar para a vida que mantínhamos como “normal” até então – um olhar reflexivo que nos levaria a ações para garantir melhor qualidade de vida, reduzir as desigualdades e preservar o meio ambiente.

Em março muita gente pensava assim. E neste momento, no 2º dia do mês de julho, temos no Brasil quase 1 milhão e meio de pessoas infectadas e mais de 60 mil óbitos. É até difícil manter o otimismo diante deste cenário em relação a tais mudanças nos padrões de comportamento e consumo.

Em países onde a transmissão do vírus foi melhor controlada, governos começaram a flexibilizar a abertura de espaços que permaneceram fechados por meses, como museus, salões de beleza e restaurantes. Todos os estabelecimentos e frequentadores deverão seguir protocolos de segurança recomendados por especialistas, como limitação da quantidade de pessoas nos locais, uso de máscaras, distanciamento e lavagem das mãos. É o chamado “novo normal”, um termo que na verdade é tão somente uma acomodação para que tudo volte a ser como antes, porém com algumas modificações. 

É verdade que estamos inseridos no contexto em que mudanças importantes vêm redefinindo a sociedade há algum tempo em todos os setores (principalmente nas tecnologias da comunicação e acesso à informação) e elas não aconteceram do dia para a noite ou em um estalar de dedos, embora nas últimas décadas a velocidade com que essas mudanças foram implementadas é assustador – quem está na faixa etária dos 35 anos em diante compare, por exemplo, como era o mundo sem internet. É muito difícil nos adaptarmos a novos padrões e de forma tão repentina, mas a julgar pelas cenas que todos observamos quando houve a abertura do comércio, sobretudo de shopping centers e lojas de itens não essenciais, será difícil abandonarmos certos hábitos.

Em países como Brasil e Estados Unidos, onde a pandemia está fora de controle e é tratada com desdém criminoso pelos seus respectivos chefes de estado, a perplexidade é ainda maior com o comportamento de risco das pessoas, sobretudo daquelas que não precisariam sair de casa. Mesmo cientes do risco em um cenário de crescimento da transmissão do vírus, é compreensível os apelos e até o desespero dos pequenos e micro empresários brasileiros em pressionar prefeitos e governadores para a flexibilização das medidas de restrição e isolamento, afinal as contas chegam e eles precisam sobreviver, porém as pequenas empresas não tiveram em tempo hábil o apoio necessário e facilitado do governo federal e bancos para linhas de crédito e empréstimos em condições diferenciadas. A postura negacionista e inconsequente do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, causa espanto no mundo inteiro, afasta investidores e traz sérios danos à imagem e credibilidade do país, o que afeta a economia.  

Na verdade o Brasil utilizou menos de 30% do orçamento do ministério da Saúde para o combate à pandemia, além da troca constante de ministros da pasta e o cargo ocupado de forma interina por um militar do exército sem experiência na área. Sem uma liderança positiva e propositiva no país para unificar ações e discursos no combate ao vírus, as pessoas sentem-se confusas, desamparadas e vulneráveis diante do imenso fluxo de mensagens e informações conflitantes. Entra em cena outro “tipo” de vírus: a ignorância via aplicativos e redes sociais. 

A pandemia não escancarou nada

No mês de abril o sociólogo italiano Domenico de Masi, em entrevista, afirmou que o coronavírus “está nos ensinando a dispensar o supérfluo, a reconhecer e privilegiar o essencial. Está nos ensinando que o consumismo é um vírus pior ainda, que nos faz perder o sentido do necessário para nos impor o supérfluo”. Quem não conhece o autor do ótimo livro “O ócio criativo” pode até imaginar que tais palavras foram proferidas por um algum coach de autoajuda ao estilo good vibes ou blogueirinha gratiluz; porém, De Masi defende a sua tese de que o tempo de ócio é necessário e deveria ser utilizado de forma mais criativa e inteligente. Para muitas pessoas em isolamento é uma boa oportunidade para tais reflexões e colocar em prática as boas ideias o que o sociólogo italiano prega, seja desenvolvendo atividades artísticas, aprendendo novas receitas ou frequentando cursos online. 

No entanto há muitas realidades e “ficar em casa” não é para todos, principalmente em um país como o Brasil. A pandemia não escancarou as desigualdades, como muitos têm insistentemente afirmado: elas estavam à vista de todos, mas entorpecidos e condicionados à “vida normal”, não enxergávamos ou fazíamos pouco caso do que acontecia e acontece ao nosso redor. É a normose, termo cunhado pelos psicólogos Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema para definir “um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida”. Condicionados desde a infância com o que se considera “normal”, perdemos a sensibilidade e banalizamos a morte de pessoas, sobretudo dos mais pobres e distantes de nossas bolhas e círculos sociais.


No caso do Brasil, em particular, entra em cena a pavorosa desigualdade que é fruto de uma forte herança escravocrata, elitista e autoritária. Por isso que o termo “novo normal” é apenas uma acomodação, como citado: a essência e os mecanismos de um sistema econômico e social predatório e excludente permanecerão rigorosamente iguais, vide o racismo estrutural e institucionalizado no país. “Novo” e “normal” não se encontram aqui, pois não é disso que precisamos, mas sim da ruptura desse sistema que não atende as necessidades básicas de vida digna para os seres humanos.

Vírus não ensinam

Os vírus são pequenos agentes infecciosos e invisíveis a olho nu. São parasitas intracelulares que surgem através de processos naturais de evolução – no caso do coronavírus, não acreditem em teorias conspiratórias sem fundamento que afirmam sobre o vírus ser criado em laboratório chinês com finalidades específicas.

Ou seja, vírus não ensinam. Professores ensinam, mas estes profissionais seguem desvalorizados, ignorados e não raramente chamados de “comunistas” ou outros termos em boa parte depreciativos; especialistas e pesquisadores ensinam e orientam, mas seus anos de estudos e dedicação à pesquisa são descartados pelo “achismo” de inúmeros usuários de redes sociais e aplicativos de mensagens compartilhando opiniões e teorias absurdas repletas de ignorância – e tais “opiniões” são ostentadas de forma orgulhosa e arrogante; muitos artistas, poetas, escritores e filósofos ensinam, mas são rotulados como sonhadores, inúteis e improdutivos; historiadores apresentam fatos históricos e nos ensinam como sociedades lidaram com crises sanitárias, mas debochamos com o senso comum “quem vive de passado é museu”.

Cabe aqui uma breve digressão: com a postura negacionista e irresponsável no trato da pandemia por parte de chefes de estado como Jair Bolsonaro e Donald Trump, é muito comum ouvirmos a afirmação um tanto conformista de que “a história julgará quem foi omisso”. A função da história não é a de julgar, mas de apresentar fatos e compreendê-los. A questão é como esses fatos serão apresentados no futuro. Recordem que genocidas e escravocratas figuram em livros, praças e levam nomes de ruas e até cidades como homenagens por serem considerados grandes homens e até mesmo heróis.

Não precisamos de um vírus e de uma pandemia para “nos ensinar” valores e lições que deveríamos ter aprendido há muito. Como avançamos tanto em tecnologias, comunicações e tantos outros setores e continuamos atrasados, digamos, em termos de comportamento e, pior, apresentando aparentemente uma espécie de regressão ao sustentar ideias oriundas de fake news e teorias conspiratórias obscurantistas? Para o filósofo britânico John Gray, “nada é mais lugar-comum do que lamentar que o progresso moral não tenha conseguido acompanhar o conhecimento científico”, escreveu em seu livro “Cachorros de palha”, e continua: “o progresso técnico deixa apenas um problema a resolver: a fraqueza moral da natureza humana”.

Discussões filosóficas conceituais à parte, o fato é que com as novas tecnologias da comunicação e informação estamos habituados a respostas e soluções rápidas, quase instantâneas. Tempo é fundamental e esperar, nos dias de hoje, é equivalente a um grave pecado – não à toa nos tornamos impacientes, ansiosos e estressados, tentando compensar frustrações com desenfreado consumismo. Nunca estamos satisfeitos com o que temos e queremos sempre mais, somos incentivados ao ciclo “consumismo-descarte-consumismo”, além da armadilha da produtividade que procura ditar o ritmo do tempo, transformando-o em tempo de trabalho

A natureza, porém, impôs o seu ritmo e demonstrou o quão frágil é a condição humana, além das consequências de nossos atos. Reconhecer tal condição seria um dos passos para que pudéssemos fortalecer laços de cooperação com base na empatia e abandonar a fé em um sistema destrutivo que claramente está em ruínas e tenta se manter conclamando as pessoas a “voltarem ao normal”. Vale citar novamente De Masi, na mesma entrevista, em que ele nos alerta: “tudo isso porque perseguimos um modelo de vida baseado no frenesi do excesso que o neoliberalismo legitima”.  

A pandemia demonstra a necessidade de mudança e ruptura deste modelo de vida. O que está escancarado é o caminho que precisamos escolher diante de duas trilhas: ou seguimos a mesma via batida e perigosa que nos trouxe a essa situação ou seguimos um novo caminho do qual poderemos agregar e construir novas perspectivas ao longo da jornada. Este novo caminho parece difícil de começar? Fique com a provocação de Hermann Hesse, em seu magistral “Demian”: "Todos os homens buscavam a 'liberdade' e a 'felicidade' num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória. (...) quando se anuncia um novo ideal, um novo impulso de crescimento, inquietante e talvez perigoso, todos se acovardam". 

A escolha deveria ser óbvia, mas são tempos em que até obviedades sensatas soam estranhas e idealistas. O que a vida quer de nós é coragem, afirmou Guimarães Rosa. Seremos corajosos ao menos para abrir os olhos?  

Referências:

GRAY, John. Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2011. 
HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.   

Um comentário:

  1. Perfeito! Saramago tbém foi certeiro no Ensaio sobre a Cegueira' a Cegueira branca que insiste em perdurar. Cabe a pergunta, qual a responsabilidade daqueles que "enxergam? Continuamos na luta! Grande reflexão!

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