Pandemia: "Voltar ao normal" é persistir no problema.


A pandemia do novo coronavírus (covid-19) fez o mundo inteiro parar em poucos meses. Como o vírus é transmitido rapidamente e ainda não há um medicamento eficaz ou vacina, a Organização Mundial de Saúde recomenda que os países imponham as restrições de circulação, o chamado distanciamento ou isolamento social. Temos um terço da população mundial de alguma forma isolada em suas casas ou restrições de circulação: comércios, fábricas, escolas, viagens, eventos esportivos e musicais, quase tudo parou.

Obviamente tal medida tem suas implicações e consequências. Os empresários e profissionais ligados ao mercado financeiro estão preocupados com a economia, os trabalhadores estão apreensivos por seus empregos, as famílias estão ansiosas para retomarem suas rotinas. Em todos os setores da sociedade o questionamento é só um: “quando voltaremos ao normal?”.

É muito prematuro arriscar qualquer previsão sobre até quando tal situação vai perdurar e o que vai acontecer daqui para frente; porém, longe de bancar o profeta ou futurologista, é melhor esquecermos o que compreendíamos como “normalidade”, pois disso dependerá a nossa sobrevivência e das futuras gerações.

Vigilância e cicatrizes

Uma pandemia que já contaminou 1 milhão e 400 mil pessoas e causou a morte de 80 mil em todos os países (dados até 07/04) forçosamente promoverá mudanças em nossa relação para com o planeta, que sente os efeitos da ação humana sobre o meio ambiente – o próprio coronavírus é uma das consequências da degradação ambiental. Nenhum setor ficará imune: na área da economia, por exemplo, os governos deverão rever suas políticas de austeridade em áreas sociais, garantir créditos emergenciais para as empresas (sobretudo os pequenos e micro empresários) e fortalecer programas de transferência de renda (inclusive a renda básica universal), dentre outras medidas.

De forma inédita graças à internet, estamos vivenciando este momento de forma mais ativa, acompanhando as notícias e atualizações sobre o avanço do vírus em tempo real. A percepção de uma ruptura do sistema não é clara para todos com a avalanche de informações (e desinformações através de fakes news amplificadas com posturas irresponsáveis) e sobretudo pela prioridade em preservar a vida e a saúde no presente momento; e por este motivo o futuro pós-covid19 é incerto. Contudo, é possível prever dois cenários: uma sociedade cada vez mais vigiada através de celulares – o que já acontece, porém intensificada daqui para frente. Países como China, Coreia do Sul e Israel adotaram o rastreamento digital através do GPS e aplicativos nos celulares das pessoas para combater o coronavírus e impor quarentena ou sanções individuais a quem viola as medidas adotadas pelas autoridades do país. Se por um lado o uso da tecnologia tem se mostrado eficiente para conter o avanço da pandemia, por outro fica o receio de que liberdades civis e constitucionais possam ser violadas e os dados de cada cidadão sejam utilizados por governos autoritários para motivações políticas e antidemocráticas - inclusive para justificar nacionalismos extremos, envolvendo xenofobia, fechamento de fronteiras e discriminação racial.

Outro cenário está ligado ao fator emocional. No romance “A Peste”, de Camus, em dado momento dois personagens conversam sobre a epidemia de peste bubônica que isolou a fictícia cidade de Oran e se a vida voltaria ao normal ao fim do flagelo. Um deles chega à conclusão de que os moradores da cidade tentariam retomar a vida normal de antes como se nada houvesse acontecido, porém "a peste deixaria vestígios, pelos menos nos corações". Contextualizando o livro publicado em 1947 para nossa realidade, o distanciamento social durante longo período de tempo, afetos separados fisicamente, celebrações vedadas (sociais, culturais, religiosas) e despedidas solitárias de familiares ou conhecidos que perderam a vida devido ao vírus deixarão marcas profundas em boa parte das pessoas.

Alertas

O fato é que “voltar ao normal” também representa persistir com os mesmos modelos que levaram a humanidade até este momento em 2020 e se prosseguirmos neste rimo teremos novas crises em curto espaço de tempo - lembremos que uma terrível pandemia ocorreu há pouco mais de 100 anos (Gripe Espanhola, 1918) e em termos históricos é um espaço de tempo muito pequeno, sem falar em epidemias locais como a que o Brasil enfrentou na década de 1970 com a meningite e na recente influenza A (H1N1), que ficou mais conhecida como gripe suína.

Não pensem que tudo isso surge espontaneamente: no livro “Planeta Favela”, de 2006, Mike Davis busca origens para muitos destes problemas no colonialismo britânico no início do século XX “na Índia, na Birmânia e no Ceilão, [onde] a recusa de melhorar as condições sanitárias ou de fornecer até a infraestrutura mais rudimentar aos bairros nativos garantiu imenso volume de mortes por epidemias (peste, cólera, gripe) e criou enormes problemas de miséria urbana”. Tal parecer também pode ser aplicado a outros países nos quais a exploração dos recursos e da mão de obra seguiu o mesmo modelo desprezando as mínimas condições básicas para o bem-estar e saúde dos trabalhadores e população em geral.

Em estudo recente (2015), a Organização Mundial de Saúde (OMS) já antecipava que o mundo poderia passar por uma grande epidemia e que esta seria relacionada a uma gripe, pois as condições de infraestrutura sanitária, desigualdade e pobreza continuavam favoráveis para o surgimento de novos vírus e mutações. A OMS calculava à época um impacto de US$ 540 bilhões na economia mundial em caso de pandemia de nível entre moderado e grave. Ainda de acordo com a OMS, cada dólar investido em saneamento básico geraria uma economia de pouco mais de 4 dólares, Pode parecer pouco, mas se o Brasil investisse na universalização da infraestrutura sanitária economizaria R$ 1,4 bilhão na área da saúde.

Como se percebe é bem mais barato e vantajoso investir em prevenção e saneamento básico para as pessoas. No pavoroso debate que se instalou recentemente no país sobre "salvar vidas x salvar economia", são estes os dados que deveriam ser levados em conta porque é óbvio: não há como girar a economia com milhares de infectados e mortos - a cidade de Bérgamo, na Itália, é o melhor exemplo, pois ignorou todos os alertas e recomendações das autoridades médicas e o ritmo de vida continuou normalmente, com direito à campanha da Confederação da Indústria local para que o comércio, fábricas e demais estabelecimentos funcionassem sem restrições.

O resultado foi tenebroso: Bérgamo sequer conseguia lidar com os caixões acumulados em cemitérios, igrejas e demais locais. Outras cidades e países também ignoraram os alertas - inclusive o Brasil através de seu presidente, o que felizmente não foi seguido pelos governadores e prefeitos. Onde não foram tomadas as medidas restaram arrependimentos tardios e envergonhados que não trarão vidas de volta. Ignorância também mata.

Normalidade inaceitável
De acordo com a doutora Rita de Cássia Barradas, é interessante notar que “as epidemias estiveram sempre presentes na História do homem na Terra, intensificando-se nas épocas de transição entre os modos de produção e nos momentos de crise social.” Estamos passando por mais um período de transição na história com o que podemos chamar de “revolução digital”, que vem mudando a nossa rotina em todos os setores – desde o modo como nos relacionamos e trabalhamos e mesmo com atos considerados mais simples como pedir comida.

No entanto, por trás deste “ato simples” ligado à alimentação há uma estrutura social e trabalhista que o aplicativo do celular não mostra: a precarização das condições de trabalho, a luta pela sobrevivência em cima de uma moto ou bicicleta durante horas a fio sem garantia de direitos básicos e ganhos irrisórios. Todos os dias estes milhares de trabalhadores por aplicativos e os informais voltarão para suas casas nas periferias e enfrentarão um problema antigo: as péssimas condições sanitárias em seus bairros, o que impede a prática da higiene preventiva, por exemplo. De acordo com o Instituto Trata Brasil, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e apenas 53% da população têm acesso a serviços de coleta de esgoto. Reparem que esta é a “normalidade” da qual milhares de pessoas precisam lidar todos os dias e é inaceitável em pleno século XXI tais condições. Para o líder indígena e escritor Aílton Krenak, se voltarmos ao mesmo padrão de normalidade ao qual vivíamos e fomos condicionados a aceitar, a morte de milhares de pessoas terá sido em vão no sentido de que a humanidade simplesmente abdicou da vida.

Não é possível e tampouco inteligente “voltar ao normal” dentro de um modelo que claramente está em ruínas e cujo resultado é uma enorme desigualdade e concentração de renda às custas da exploração intensa dos recursos naturais e de trabalhadores mal remunerados, extenuados e sem perspectivas, como aponta o filósofo sul-coreano e radicado na Alemanha, Byung-Chul Han: “Atualmente, já não trabalhamos por causa de nossas próprias necessidades, e sim pelo capital. O capital gera suas próprias necessidades, que erroneamente percebemos como se fossem nossas”. A pandemia nos convida drasticamente para a reflexão: do que realmente precisamos para uma vida melhor e o que querem nos impor como necessário? Há mais de 150 anos o escritor norte-americano Thoreau deixou escrito em seu fabuloso Walden que "o custo de uma coisa é a quantidade do que chamo de vida que é preciso dar em troca, à vista ou a prazo".

É tempo de revermos nossos hábitos de consumo e consumismo; é tempo de repensarmos o nosso sistema educacional, de adotarmos novas dinâmicas no trabalho, em relacionamentos interpessoais e no estilo de vida; desapegarmos de modelos arcaicos que regem o nosso cotidiano e, principalmente, é tempo de agirmos com maior responsabilidade ao escolhermos nossos representantes políticos e fontes de informação.

E o mais importante: a redescoberta de que vivemos de forma coletiva. O que afeta indígenas na Amazônia ou trabalhadores de aplicativos de entrega de comida também afeta a todos nós. Daí a importância de políticas públicas integradas, de lideranças e mesmo de influenciadores sensatos, das ciências (notem o plural), de novos paradigmas para um novo mundo e da informação sem achismos infundados a partir de teorias conspiratórias absurdas. Ao tomarmos consciência de nossa fragilidade diante de um vírus, o desejável (e mais lógico) seria nos tornarmos mais unidos e empáticos.

Referências:
CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 2009.
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
THOREAU, Henry David. Walden. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016.
HAN, Byung-Han. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

Um comentário:

  1. Olá, caro Jaime.
    Desde que foi declarada a pandemia, me ficou na cabeça esse mesmo questionamento: como voltar ao normal, se ele não é e nunca foi algo correto e ético, com milhões de pessoas sofrendo para manter vivo um sistema onde uma elite privilegiada manda e desmanda?
    O problema é que todo nosso sistema político-social-cultural-etológico não funciona (pois, se funciona apenas para alguns, então não funciona) e muitas pessoas não se dão conta disso, e querem voltar ao seu "normal" (seja lá o que for isso), e, para isso acreditam em qualquer coisa, o que pode vir a ser tão prejudicial quanto o próprio vírus Corona.
    Não sei dizer o que ocorrerá em nosso futuro próximo, mas, se essa pandemia servir para que as pessoas reflitam sobre seu papel em uma sociedade de consumo, então essa quarentena terá servido para algo além de se evitar o contágio mais facilmente.
    Fazia um bom tempo que eu não aparecia por aqui, achei bem agradável o novo visual do blog.
    Abraço e que tenhamos esperança no futuro, porque isso ninguém pode tirar da gente.
    Até mais ver, santista.

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