O país da indiferença seletiva


Escrevo essas mal digitadas em maio, no dia 11. O Brasil segue para mais um mês em que a transmissão do coronavírus continua acelerada e o país já é visto como potencial epicentro da doença. Nem os milhares de infectados e mortos têm convencido a muitos brasileiros da importância da prevenção, do distanciamento e isolamento social recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), médicos, cientistas e pesquisadores.

O quadro torna-se ainda mais dramático quando figuras públicas e influentes minimizam o vírus e induzem a comportamentos inaceitáveis em plena pandemia.

Notório adepto de teorias conspiratórias e com posturas que demonstram claro desprezo às ciências, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao ser questionado sobre o recorde dos números de óbitos pela covid19 na última semana de abril, expressou: "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?". Tal desprezo pela vida da forma como foi demonstrada por quem ocupa o mais elevado e importante cargo da nação é uma das páginas mais bizarras e revoltantes de nossa história recente.

O desprezo pela vida parece ser o tom de muita gente nestes tempos de pandemia. A digital influencer Gabriela Pugliesi, famosa nas redes sociais por suas dicas fitness, resolveu dar uma festa para os amigos e, claro, publicar fotos e vídeos do evento para seus 4 milhões e meio de seguidores. Como se não bastasse quebrar todas as recomendações de isolamento, a influencer largou a expressão "foda-se a vida" de forma bastante entusiasmada em vídeo - que posteriormente foi apagado, mas já era tarde: milhares de pessoas viram e se indignaram, afinal há milhares de pessoas lutando pela vida em hospitais e em suas próprias casas. O caso de Pugliesi é ainda mais estarrecedor porque ela já havia contraído o coronavírus logo no começo da pandemia no Brasil.


Vidas descartáveis

Para qualquer pessoa que ainda conserve o senso de humanidade é assustador ouvir tais afirmações de forma impassível - e a pandemia vem escancarando que muita gente no país está infectada pela peste da ignorância e também o quanto somos uma sociedade autoritáriahierarquizada e estruturalmente racistabem diferente da visão romântica construída sobre a democracia racial e o brasileiro cordial. Os exemplos citados das personalidades mencionadas constituem-se em modelos de todo esse caldo histórico que nos caracteriza. 

Bolsonaro é um homem que notabilizou-se por exaltar atitudes violentas ao longo de sua trajetória pública. Defensor da ditadura militar e apoiador intransigente de grupos de extermínio formados por policiais e ex-policiais civis e militares, o atual presidente da república sempre enalteceu a morte daqueles que julga como “inimigos” e “bandidos”. Bolsonaro se vangloriou, como capitão do exército, ter sido treinado para matar, lamentou o fato da ditadura militar não ter matado mais de 30 mil pessoas e que o grande erro do regime foi torturar, e não matar. Repare que o verbo “matar” é recorrente na biografia do presidente. Como um homem com tal currículo conseguiu conquistar tantos corações e mentes a ponto de tornar-se presidente da República e, ainda hoje, em plena pandemia, contar com o apoio de milhares de pessoas?

A verdade é que esses tantos corações e mentes têm afinidades com essa linha de pensamento. O Brasil é um país de forte herança escravocrata e raízes autoritárias. Pare e pense sobre o quão horrível é a palavra escravo e o seu significado: uma pessoa em total sujeição ao seu senhor. Escravos não têm direitos, desejos e muito menos liberdade – sua função é servir, sem reclamar ou reivindicar. 

A vida do escravo gira em torno do seu senhor. A Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil em 1888, não desfez as convicções escravocratas da elite que mesmo no ano de 2020 enxerga a vida dos negros e, por extensão, dos pobres, como algo descartável fora de seus propósitos de servidão – hoje, no caso, empregos com péssima remuneração e sem direitos trabalhistas, mas com recursos compensatórios que soam familiares: “se o escravizado fosse rebelde, era chicoteado. Se fosse cooperativo, ganhava folga semanal, o direito de cultivar uma horta, de ir à missa e de ganhar sua própria alforria”, afirma o jornalista e escritor Laurentino Gomes. O mesmo traço dos séculos de escravidão e autoritarismo que trata pessoas a chicotadas permanece hoje: vidas descartáveis, mão de obra facilmente substituível. O “e daí?” expresso por Bolsonaro é repetido em coro pela elite e pela classe média endividada que se enxerga como privilegiada. O “e daí?” é direcionado para classe social e gêneros específicos – ou seja, é seletivo. O “e daí?” é o lavar as mãos diante de nossa vergonhosa desigualdade.  

O hedonismo

O caso de Pugliesi segue em direção um pouco diferente, apesar de estarem ali os elementos do desprezo seletivo que movimenta o “e daí?”. Gabriela Pugliesi é filha de classe média alta paulistana (nasceu em Salvador), formada em Desenho Industrial e desde os 13 anos se dedica às atividades físicas que a tornaram famosa por exibir rotinas de exercícios em rede social. Passou a dar dicas sobre alimentação, saúde, roupas, cabelos, maquiagem, ou seja, a garota parecia ter o toque de Midas em tudo o que fazia – e isso rendeu contratos lucrativos, parcerias com várias empresas e a maior riqueza dos tempos digitais: as visualizações e likes de milhares de seguidores que se transformaram não apenas em fãs, mas também em consumidores e adoradores do estilo de vida Pugliesi.

No estilo de vida Pugliesi não há espaço para negatividade, pois tudo gira em torno da positividade, alto astral, good vibrations: festas badaladas, celebridades e o melhor que o dinheiro (muito) pode comprar. Nisso não há novidade, afinal garota é apenas mais uma típica digital influencer dentro do padrão que o filósofo Byung-Chul Han chama de “sociedade positiva, na qual as coisas, agora transformadas em mercadorias, têm se ser expostas para ser, seu valor cultural desaparece em favor de seu valor expositivo”.

Dentro deste cenário não há maiores espaços para reflexões além de frases soltas e superficiais de autoajuda. Fatos negativos, embora inerentes à vida, como doenças, sofrimentos e morte não existem. Mas a vida real é bem diferente. Pugliese foi uma das primeiras pessoas no Brasil a serem infectadas pelo coronavírus. A reação da musa fitness foi a postagem de um texto em rede social “agradecendo” ao vírus e romantizando a doença com frases como “num instante damos conta que estamos todos no mesmo barco, ricos e pobres” e “bastaram meia dúzia de dias para que o universo estabelecesse a igualdade social”, demonstrando total indiferença à realidade do país, uma das maiores desigualdades do planeta.  

Curada, Pugliese deu a citada festa e gritou “foda-se a vida”. Confrontada com a realidade que destoa da positividade permanente propagada em suas postagens, o “foda-se” funcionou como o desprezo para uma vida repleta de restrições e distanciamentos que a pandemia impôs. Um “foda-se” para um mundo onde a doença atrapalha seus negócios em que o consumismo de futilidades deu lugar ao consumo do que é estritamente essencial para sobrevivência. Em um mundo sem festas, sem celebridades, sem glamour, um mundo que sentiu a necessidade de dar ouvidos à ciência, pesquisadores e estudos realistas sobre o que estamos enfrentando, o que resta para uma influencer que se notabilizou justamente por um estilo de vida que dificilmente “voltará ao normal” a longo prazo ou talvez nunca mais?

Impossível dar aquilo que não se tem

Diante de tais falas e atitudes, muitas pessoas fazem apelos para que a empatia esteja mais presente em nossas relações e sobretudo neste momento em que o vírus da covid-19 avança rapidamente entre os mais pobres. O dicionário Michaelis de Língua Portuguesa define “empatia” como “habilidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa” e “compreensão dos sentimentos, desejos, ideias e ações de outrem”.

Em meados do mês de março foi realizado um movimento a partir das redes sociais para que profissionais de saúde como médicos e enfermeiras fossem homenageados com aplausos nas janelas, sacadas e varandas das casas e apartamentos. Tudo isso é muito bonito e várias mensagens definiram o gesto como empatia, porém fora das redes sociais as enfermeiras enfrentam preconceitos e hostilidades por pessoas que temem a infecção pela covid19 - e isso tem partido de pessoas que não estão devidamente informadas, por pura ignorância e até mesmo motivadas por ideologia política. Tratados como super-heróis em ilustrações, frases e memes na internet, os profissionais da área de saúde na linha de frente contra o coronavírus também sentem medo, ansiedades, inseguranças, cansaço físico e emocional – ou seja, são humanos como todos nós, não super-heróis invulneráveis e perfeitos.

O exercício da empatia passa justamente pela consciência de humanidade. Não à toa a fundadora da enfermagem moderna no século XIX, Florence Nightingale, afirmou: “Quão pouco qualquer pessoa em boa saúde, homem ou até mulher, se imagina vivendo a vida de um doente!”. Ao se colocar no lugar de um doente, de um ser humano vulnerável, Florence entendeu o sofrimento da pessoa e rechaçou qualquer possibilidade de tratar alguém com um “e daí? Lamento, o que eu posso fazer?”. 

Ninguém pode dar aquilo o que não tem. As pessoas podem amadurecer e desenvolver novas práticas e ideias, desde que haja o sentimento e o desejo de mudança. Aqui está o ponto chave: as pessoas querem mesmo mudar? Para o escritor Hermann Hesse, “todos os homens estão prontos a fazer o impossível quando seus ideais estão ameaçados; mas quando se anuncia um novo ideal, um novo impulso de crescimento, inquietante e talvez perigoso, todos se acovardam”. Citando outro grande escritor, para o brasileiro Guimarães Rosa o que a vida quer da gente é coragem. Coragem inclusive para nos enxergamos como realmente somos e desconstruir padrões que foram assentados a partir de modelos escravocratas e autoritários. 

O grande desafio para os anos pós-pandemia é desenvolver o senso de coletividade em um mundo em que o sociólogo Zygmunt Bauman chama a atenção para “o emergir da individualidade [que] assinalou um progressivo enfraquecimento, a desintegração ou destruição da densa rede de vínculos sociais que amarrava com força a totalidade das atividades da vida”. Certamente muitos hábitos deverão mudar e será preciso adaptar a um mundo que exigirá novas atitudes – e a empatia fora da esfera privada é uma delas, dentre tantas outras necessárias e urgentes.

Felizmente muitas pessoas indignaram-se com o "e daí?" e o "foda-se a vida". Isso demonstra que ainda não estamos todos confortavelmente entorpecidos com tais manifestações de tamanha indiferença para com a vida humana e também pode sinalizar, ainda timidamente, que as pessoas estão repensando quem vale a pena ser ouvido e admirado - ou seguido. Mesmo com todo o pesado histórico deste país e de como isso formou a nossa sociedade, talvez haja esperança. 

Referências: 

Bauman, Zygmunt: Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
Hesse, Hermann: Demian. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012.
Krznaric, Roman: Sobre a arte de viver: lições da história para uma vida melhor. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Han, Byung-Chul: Sociedade da Transparência. Petropolis, RJ: Vozes, 2017. 

Ilustrações: do autor. 


3 comentários:

  1. Um texto muito bem escrito, trazendo verdades que nos REPUGNAM! Não dá pra aguentar esse tipo chamado de presidentinho dumas figas, com o E DAÍ? E pior, dá mau exemplo e nos irrita a cada dia com suas atitudes de inconsequente ,irresponsáveis e verme que é! Melhor eu parar, pois minha pressão explode,rs abraços,cheios, lotados de indignação, chica

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  2. Jaime! Maravilhoso ensaio que confesso não me deixou muito a comentar, e nada acrescentar. Falaste em "empatia", apenas ressalto esta palavra num tempo em que, mais do que nunca, cuidar-se é cuidar do iutro.
    Parabéns!
    Grande abraço!

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