A pandemia e o vírus da normose


A pandemia no brasil está absolutamente fora de controle. Mais de duas mil pessoas estão morrendo diariamente de uma doença que tem vacina e formas de prevenção. Nos aproximamos da tenebrosa marca de 500 mil mortos que não deveriam jamais serem tratados como meras estatísticas. Para as famílias que perderam os seus queridos, certamente não serão esquecidos, mas o que fazemos diante desta tragédia humanitária?

Estamos nos acostumando a uma normalidade forçada e superficial, na qual relaxamos quanto à prevenção e não nos importamos mais.

Uma de minhas alunas esteve internada no hospital porque foi infectada pela covid-19. O mesmo aconteceu com a mãe. A estudante conseguiu se recuperar, mas a mãe infelizmente veio a óbito. O pai de um aluno faleceu devido à covid-19. Escolas estão abertas para aulas presenciais em vários lugares do brasil em meio a um cenário em que até o transporte escolar andou carregando caixões para o cemitério com vítimas dessa terrível pandemia.

Me digam: vocês acham isso “normal”?



“Ah, mas temos que viver a vida”. Que vida é essa em que assistimos passivamente milhares de pessoas infectadas, sofrendo sequelas variadas e morrendo sem ao menos poder velar o luto? Que vida é essa baseada na destruição insana e desenfreada do meio ambiente? Que tipo de vida é essa em que políticas de austeridade colocaram 19 milhões de pessoas no mapa de fome? Sim, a pandemia agravou os problemas econômicos que já vinham acontecendo com tais políticas adotadas há alguns anos e que sustentam um sistema socioeconômico excludente e parasitário que beneficia apenas a um punhado de pessoas.

“Pronto, começou a politização, falou em política”. Temos que politizar sim! Um dos maiores problemas do brasil nestes últimos anos é o desprezo à política. É bem verdade que tocar no assunto é espinhoso nestes tempos de desinformação, agressividades e algoritmos ditando pautas nas redes sociais e plataformas de vídeos, mas quando deixamos de nos importar aparecem oportunistas e decidem o que fazer. Quando falamos em vacinas, Sistema Único de Saúde e Plano Nacional de Imunização estamos falando de políticas públicas que são deveres e responsabilidade do estado e seus representantes. Há provas contundentes de que o desgoverno brasileiro na figura do seu presidente da república e apoiadores (dentre ministros, médicos, empresários, jornalistas e demais personagens) trataram com omissão e desdém a aquisição de vacinas e medidas preventivas de transmissão de controle do vírus.

=Os responsáveis por este genocídio em curso no brasil não podem simplesmente “serem submetidos ao julgamento da história” pois sabemos como as coisas funcionam neste país. Não podemos deixar isso passar batido, não podemos mais uma vez assistir a tudo isso passivamente. Milhares de pessoas que saíram às ruas de forma corajosa no dia 29 de maio representam um sentimento de indignação represado ao longo de uma pandemia que em cinco meses de 2021 já matou mais pessoas do que em todo o ano passado no brasil.

Insisto que estamos todos doentes. O nosso diagnóstico é a normose, caracterizada como “o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria das pessoas de uma determinada sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes” pelos autores Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema no livro “Normose – a patologia da normalidade”. O que predomina nesta patologia é o caráter automático e inconsciente das atitudes e comportamentos, ou seja, as pessoas seguem exatamente aquilo que diversas instituições da esfera social (familiar, escolar, religiosa, econômica, política, jurídica) determinam ser “normal” e sem questionamentos. É uma espécie de cegueira da qual não nos permite enxergar além ao nosso campo de visão e ao redor. Até enxergamos, mas somos como autômatos burocráticos que logo voltam ao estado de adaptação passiva a uma sociedade doente.



É o que Roberto Crema cita no livro: “o mais incrível é o fato de a maioria das pessoas não se importar, como se nada disso lhe dissesse respeito... nesse sentido, o normótico é a pessoa que não vê e não responde ao óbvio”. É por isso também que eu insisto em afirmar que “voltar ao normal” é a pior coisa que poderia nos acontecer, pois foi aquele “normal” que nos trouxe ao detestável “novo normal”.

Aqueles que ousam contestar tal “normalidade” e suas convenções logo são classificados como loucos, excêntricos, idealistas, sonhadores, ingênuos e outros rótulos similares, como “problemáticos”.

Um desses “problemáticos” foi o escritor norte-americano Henry David Thoreau, que foi viver durante dois anos e dois meses em uma pequena cabana construída por ele mesmo no meio do mato, à beira de um lago que inspirou o título de suas anotações que se transformaram em livro, “Walden”. Ao contrário do que muitos imaginam, Thoreau não era um ermitão que se isolou completamente, mas de vez em quando dava um pulinho até a cidade (Concord) e recebia visitas. O que ele mais temia não eram os chamados predadores de galinhas, e sim os “predadores de gente”. Tais predadores são os normóticos que estranham qualquer modelo que fuja às convenções estabelecidas da “normalidade”.

É deste tipo de gente que também deveríamos temer, pois tentam nos empurrar para a normose de uma sociedade que age com indiferença diante dos maiores absurdos cometidos diariamente contra a vida, contra os direitos humanos, contra o meio ambiente, contra a educação e a saúde, etc. Estamos vivendo sob notas de assessoria de imprensa e textos publicitários, entre likes e bolhas de redes sociais narcisistas com influencers deslocados da realidade. Somos convencidos de que é isso aí mesmo e acabou, temos que seguir em frente, fingir que está tudo bem, rolar a tela do celular naquela rede social que virou obituário após deixar um “meus sentimentos” e simplesmente esquecer poucos minutos depois.

O músico Roger Waters, ex-líder da banda Pink Floyd, lançou em 2017 o álbum “Is this the life we really want?” que em tradução livre significa “É esta a vida que realmente queremos?” e na faixa-título da música ele compôs:

So, every time (Toda a vez)

the curtain falls (Que a cortina cai)

Every time (Toda a vez)

the curtain falls on some forgotten life(Que a cortina cai sobre uma vida esquecida)

It is because we all stood by, (É porque nós apoiamos, )

silent and indifferent (Silenciosos e indiferentes)

Mais direto, impossível. A pergunta lançada por Roger Waters continua aguardando por uma resposta. É esta a vida que realmente queremos? Reflita sobre este questionamento, mas adianto: se sua resposta é “sim”, então me desculpe, mas você é apenas um cadáver andante.


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2 comentários:

  1. Olá Jaime, que texto imponente, límpido como água cristalina...
    Você tocou em assuntos que nos inflamam como o tal "novo normal" detestável! Concordo, pois as pessoas parecem estar cegas, surdas e mudas...Não se manifestam perante essa "matança" desenfreada que está acontecendo! :(
    Muitos relutam em usar máscaras, o que acho um completo descaso com as pessoas.
    Eu estou muito desanimada diante deste cenário amigo...

    Um pouco de luz brotou no fim do túnel quando, na semana passada, finalmente consegui tomar a primeira dose da vacina ASTRAZENECA /FIOCRUZ! Foi terrível agendá-la, pois a procura continua sendo imensa...Passei semanas em frente ao computador uma vez que sou responsável, desde o início da vacinação, em agendar para meu pais e toda a família! Imagine a minha ansiedade... Meus pais tomaram as duas doses da CORONAVAC. Graças a Deus estão bem! Por isso que estou mais aliviada, mas ainda triste pois nunca vivemos um momento tão sombrio amigo...
    Abraços e se cuida muito!!

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    1. Que bom, Adriana, seus pais vacinados e você também com a primeira dose do imunizante. Nos cuidemos, pois o cenário é crítico e alimentado pelo negacionismo. Um grande abraço!

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