Humanos e gênios solidários na noite que mudou o pop

 


Não sou uma pessoa fã de cinema e nem tão paciente para assistir filmes e séries por horas a fio. Bem, de perto ninguém é normal e se um audiovisual me mantém acordado é sinal de que o tema é muito interessante.

Por isso que pouco mais de uma hora e meia passaram voando ao assistir o documentário “A noite que mudou o Pop”. Ele conta a história do surgimento e gravação da música “We Are the World” para o projeto USA for AFRICA em 1985, uma campanha por donativos para combater a fome e doenças em países africanos. Na noite de 29 de janeiro nos estúdios da A&M Records, em Los Angeles, um time dos sonhos da música se reuniu para gravar a canção escrita por Lionel Richie e Michael Jackson.

Além destes, o time contava com grandes vozes do século XX: Ray Charles, Stevie Wonder, Tina Turner, Bob Dylan, Diana Ross, Bruce Springsteen e outros 43 artistas se reuniram no estúdio sob a produção do respeitado maestro e produtor Quincy Jones para a gravação. Um esforço hercúleo não apenas para reunir todos os músicos como também lidar com suas vaidades. Não à toa Quincy colou um pequeno cartaz na entrada do estúdio com o aviso “deixe o ego lá fora” — talvez por isso Prince, de talento tão imenso quanto o seu ego, não tenha participado.

É sempre muito interessante acompanhar os bastidores de criação artística. O documentário possui dois grandes méritos, a meu ver: humaniza aquelas celebridades que mesmo em vida já adquiriam status de “lendas” e desmitifica a história do “gênio isolado”.

Humanos, demasiado humanos

Bruce Springsteen vinha de um grande ano. Sua turnê mundial “Born in the USA” era sucesso com estádios lotados e shows elogiados pela característica energia de Bruce e sua E-Street Band no palco. Em 1985, ao final da turnê, a voz do cantor não estava em boas condições e ele não se esquivou de admitir isso. O artista consagrado poderia ter feito o arroz com feijão, mas é possível ver o seu esforço e dedicação para gravar a melhor voz possível para o momento, um timbre inesquecível e emocionante.  

Em contrapartida, Bob Dylan passava por uma fase difícil artisticamente e pessoalmente. O icônico compositor e cantor que inspirou inúmeros músicos parecia estar deslocado naquele espaço com tantas pessoas e encontrava grandes dificuldades para gravar a sua parte na canção. A impressão que temos é que Dylan vai largar tudo a qualquer momento e sair correndo dali. No entanto, graças à ajuda de Quincy Jones e principalmente de Stevie Wonder, finalmente o artista conhecido como “The voice of a generation” conseguiu driblar sua insegurança e soltar aquela voz.

Bruce e Bob levaram a sério o cartaz de Quincy e deixaram seus egos lá fora. Admitiram suas inseguranças, seus receios, seus momentos. E com isso ganharam mais respeito de quem já os admirava. Não eram superstars intocáveis e mimados: eram seres humanos, sujeitos a altos e baixos.

Gênios isolados?  

Desde a ideia de Harry Belafonte até a música ser concluída para tocar em todas do rádio do planeta, muitas pessoas estiveram envolvidas no projeto. A figura do “gênio solitário” é literalmente um ideal romântico que ganhou força entre o fim do século XVIII e início do século XIX, onde alguns artistas acreditavam que o isolamento poderia inspirar a criação de grandes obras de arte. Artistas considerados reclusos como Beethoven, Goethe, Emily Dickinson e Van Gogh são alguns exemplos mais notáveis. 

Ao longo de suas trajetórias, porém, absorveram influências de outros artistas, estudaram, conversaram aqui e ali... Van Gogh, por exemplo, morou em Paris e fez amizade com grandes artistas do seu tempo, como Gauguin e Cézanne; Goethe era um notório viajante por vários países da Europa. A criação pode surgir em momentos individuais que requerem distanciamento de distrações e introspecção, mas para que ela aconteça é preciso ser estimulada. 

Ao refletir sobre estes nomes e assistir o envolvimento de todos aqueles músicos e pessoal de apoio no estúdio de We Are The World, lembrei do professor e escritor Stephen Nachmanovitch afirmando que “a livre colaboração entre músicos é apenas uma das muitas possibilidades de intercâmbio estético. (...) Culturas inteiras se expressam juntas, uma colaborando com a outra, uma fertilizando a outra”. Isso foi facilmente identificado no filme, pois tínhamos artistas do pop, do rock, do soul, folk e country contribuindo neste intercâmbio e cada um, ao seu estilo, colaborando com o outro. A diversidade, ao contrário do que imaginam algumas mentes mofadas, enriquece a arte.

O sucesso de canções como We Are The World e mega eventos solidários como o Live AID de 1985 inauguraram uma série de shows beneficentes pelo mundo. Há críticas à natureza destes shows e de como o dinheiro foi distribuído (ou não) para os necessitados e vítimas da fome. São pertinentes, embora o documentário não as tenha explorado. Entretanto, isso não diminuiu a magia de um dream team musical que deixou legado antológico.

Diana Ross, no fim da gravação, chora e afirma não querer que aquela noite terminasse. Este é o sentimento que também temos ao fim do documentário, que desperta a gostosa nostalgia em uma geração e apresenta às novas e vindouras gerações como o trabalho colaborativo destes gênios produziu uma obra memorável. 

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