Coragem para desistir

 


Muito se falou sobre a corajosa decisão da estrela da ginástica Simone Biles em sua desistência de competir nas provas finais por equipe e também individual nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. A atleta, considerada uma das maiores da história, só retornou para a prova final na trave, onde ganhou a medalha de bronze.

A princípio foi especulada alguma lesão, mas a ginasta revelou que se tratava de preservar a sua saúde mental e ela não estava se sentindo tão confiante para fazer os desafiadores saltos e movimentos exigidos pelo esporte que a consagrou.  “Temos que proteger nossas mentes e nossos corpos, e não apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos", afirmou Simone Biles durante a coletiva de imprensa.

Atletas de alto desempenho e competitivos passam por inúmeras privações e situações de estresse ao longo de suas carreiras. Poucas pessoas se dão conta de todo o esforço e dedicação para se chegar a uma olimpíada, é um caminho longo e extremamente difícil. Em uma sociedade marcada pelo culto ao desempenho e produtividade, nenhum resultado é admitido senão a vitória e, consequentemente, o sucesso. A própria linguagem utilizada pela imprensa esportiva quando um atleta considerado favorito não consegue um bom desempenho é um exemplo disso: palavras como “decepcionante” e “frustração” aparecem imediatamente nos textos e locuções.

Aos ídolos não é permitido demonstrar sua parcela humana vulnerável. Quando isso acontece, parte da opinião pública não perdoa e ao expor as críticas mais cruéis principalmente na "esgotosfera" das redes (anti)sociais e caixas de comentários em sites jornalísticos.


Isso é marcante nos esportes de competição, mas é comum também em nosso cotidiano. A pressão pelo desempenho eficiente, sem falhas e com dedicação exclusiva ao trabalho, estudos ou qualquer outra atividade tem causado sérios problemas de saúde mental. Transtornos de ansiedade, depressão e burnout (esgotamento mental e físico) são crescentes em todo o mundo e afeta não apenas a produtividade profissional e esportiva, mas também o bem-estar, além dos relacionamentos pessoais e familiares. Durante a pandemia da covid-19 tais problemas foram agravados também pela insegurança sobre o dia de amanhã: tempos de incerteza que uma doença causada por um vírus que levou a óbito milhares de pessoas e que não sabemos quando vai chegar ao fim, pois a baixa cobertura vacinal e as variantes não permitem previsões quanto a datas e períodos.

Com todos os elementos envolvidos desde 2020, seria desejável que mudássemos certas concepções de vida e comportamento. Venho insistindo que o tão desejado “voltar ao normal” é o pior que poderia acontecer, pois isso significa o retorno aos mesmos padrões de comportamento nada saudáveis que naturalizamos no dia a dia e nos trouxeram a esta situação atual de crise sanitária, ambiental, social, econômica e política. E qualquer atitude que destoe de tal “padrão” é visto com estranhamento.

O recuo de Simone Biles é destoante. E corajoso. Quando dizemos “não” para o excesso de atribuições e expectativas que atiram sobre os nossos ombros para dedicarmos um tempo a nós mesmos e à nossa família, somos destoantes e corajosos também. A armadilha da produtividade e do desempenho, que transforma tempo em tempo de trabalho, precisa ser evitada e desarmada: uma vez capturado, é muito difícil escapar.

Mais do que medalhas de ouro e recordes olímpicos, o legado que a extraordinária ginasta norte-americana deixou nestes jogos olímpicos de Tóquio foi gigantesco. Como bem escreveu Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. E a coragem de dar um passo atrás hoje pode significar dois passos à frente no futuro.

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Um comentário:

  1. Uau, Jaime, só o que consigo dizer é que concordo com cada linha do seu texto!
    A cobrança excessiva por bons resultados tem produzido uma sociedade mais doente, em que até o ócio necessário para podermos nos recarregar é visto como desperdício de tempo. Quando vejo alguém orgulhoso de si mesmo por estar tão cheio de atribuições que não se permite um momento de descanso, o que sinto é pena.
    Sem falar na crueldade que foi a cobrança por bom desempenho em plena pandemia, ou seja, dane-se se parece que o mundo está caindo sobre sua cabeça, tem de produzir, tem de "se reinventar".
    Vemos um mundo de pessoas que perderam a oportunidade de desacelerar um pouco e refletir diante do que esta pandemia representou e ao invés disso insiste em uma normalidade impossível no momento.
    Precisamos de mais pessoas com a coragem de dizer não, de desacelerar, de não se deixar quebrar o espírito, de aproveitar as chances que tem de mudar padrões tão nocivos.
    Abraços e até mais!

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