Faremos bem em resistir


Digamos que esse texto será a crônica de uma crônica, esse gênero literário um tanto abandonado, mas tão nosso, tão brasileiro. Somos bons nisso. Eu, não. Mas finjo que escrevo crônicas de vez em quando. 

Em texto recente citei o título de um livro do cronista e poeta Affonso Romano de Sant´Anna: “Fizemos bem em resistir”. É uma coletânea de crônicas que proseiam sobre assuntos diversos, como bem apraz ao estilo, e o título da obra é referência a um texto maravilhoso encontrado ao longo de suas 167 páginas.

A crônica faz alusão a um ano difícil, 1984. Não se refere ao grandioso e fundamental livro de Orwell, mas sim ao ano que deixou muita gente aturdida. Eu tinha 7 anos de idade, não me lembro do que aconteceu naquele ano, a não ser do título do Santos no campeonato paulista em que comemorei tomando Coca-Cola com os meninos da rua.

Sempre esperamos por anos vindouros melhores em relação aos ano deixados para trás. O nosso Romano é um poeta e em suas crônicas sempre há elementos literários que aos mais duros soam como meras idealizações, coisa de gente vivendo em outra dimensão, longe da Terra. Mas vejam o que ele escreve sobre algo muito familiar neste 2020: 

“Bastava uma panaceia qualquer. Ou, então, que inventassem algum artifício. Projetassem nas paredes seus quartos aquele crepúsculo ou a alvorada que às vezes vejo da minha casa. Ou que tratassem os vírus e bactérias com aquilo que merecem. Com música. (...) E os mais resistentes e tristonhos darão de si o desespero e aceitarão a esperança, se algum maestro desencadear, de repente, o coral da alegria da Nona, de Beethoven.”

Impossível não lembrar, nestes tempos de pandemia e isolamentos, de músicos italianos e alemães tocando e cantando em suas varandas, seguidos pela vizinhança. No caso dos alemães, atenção: a música mais tocada foi justamente... a Nona, de Beethoven. Será que os alemães leram esta crônica de Affonso?

Tocar a nona sinfonia de Beethoven, sobretudo a Ode à Alegria, faz todo o sentido, além de sua beleza: é o hino da União Europeia e representa sentimentos de fraternidade e solidariedade. Não foi por estes sentimentos que Tedros, o diretor da Organização Mundial de Saúde, tanto pediu em seu apelo emocionado para venceremos a pandemia do coronavírus?

Tais sentimentos também são projetados nas paredes dos prédios. Foi essa a ideia que uma vizinhança em Salvador desenvolveu para exibir filmes, ilustrações, charges e poemas, transformando paredes sem graça em telas de cinema, galeria de artes, páginas e citações de livros. Das janelas, varandas, sacadas e quintais, as pessoas entram em contato com o lado sublime da humanidade através da arte.

E para que serve tudo isso, afinal, diante de um contexto em que passamos a terrível marca do meio milhão de mortos em uma pandemia sem vacina e, no desesperador caso brasileiro, um desgoverno insensível e incompetente diante de 100 mil vidas ceifadas? Serve para reavivar a esperança, tão combalida e desacreditada nesses tempos. É através da artes que a esperança será resgatada nos corações e mentes das pessoas. Peço licença aqui para relembrar o educador Paulo Freire: 

“É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir”.

Não estão desistindo os cientistas que buscam incansavelmente por uma vacina; 
Não estão desistindo os médicos e enfermeiros diante do flagelo; 
Não estão desistindo as pessoas de bom senso que usam máscaras, mantém o distanciamento social, lavam as mãos.

Sei dos irresponsáveis, do capitalismo parasitário que pouco se importa com as mortes para manter um sistema em decomposição, sei dos lunáticos e maldosos que utilizam as tecnologias digitais para promoverem o caos e a peste da ignorância. Tudo isso e muito mais, admito, contribui para a sensação de desesperança. 

Por isso escrevi essa crônica. Para mim. E para algum leitor que aqui chegar. Não é fuga da realidade ou idealismo ingênuo, é um chamado para sustentarmos a esperança de Freire e Affonso. Desistir da esperança é desistir da vida. 

Novamente recorrerei a um trecho da crônica do poeta para finalizar estas mal digitadas, que no momento em que escrevo ouço a 9ª sinfonia de Beethoven. Uma curiosidade sobre esta peça musical: o compositor alemão a concluiu quando já estava surdo. Ele também não desistiu. 

Peço licença ao poeta para atrevidamente atualizar o trecho: 

E vós, futuros suicidas, desanimados vocacionais, casais estremecidos, firmas em pré-falência, povos que não suportais mais a ditadura, 2021 vos saúda. Quem resistiu até aqui merece, enfim, a luz no fim do túnel. Fizemos muito bem em suportar 2020.”

Sim, faremos bem em resistir. 

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Referência do livro: 

Sant´Anna, Affonso Romano de. Fizemos bem em resistir - crônicas selecionadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 

Um comentário:

  1. Ando tão sensível que hoje pela manhã ouvir MPB me fez chorar... e agora, à tarde, sua crônica, gênero que aprecio muito e também escrevo mal.. mas escrevo.
    Gostei da distinção entre "esperar" e "esperançar", lamento por tanta gente ainda não compreender Paulo Freire e seu legado.
    Enfim, o dia ensolarado de hoje me fez acordar mais disposta e passei o dia me cercando de boas lembranças e notícias positivas, pois às vezes a grande carga de notícias que temos recebido ultimamente, neste 2020 trazendo uma avalanche de eventos tristes, nos dão a impressão de que não há mais fé na humanidade, que não há mais conserto. Mas não, Jaime. Tens razão. Temos de esperançar e resistir. Temos de lembrar que o ódio, o rancor, a ganância, não representam a maioria. Ainda temos aquela centelha que nos ilumina. E vamos continuar resistindo.

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