No brasil da Idiocracia, professores são transformados em vilões



Em meados do mês de abril e maio de 2020 algumas reportagens na imprensa traziam a rotina dos professores em meio à pandemia e as adaptações feitas pelo setor da educação através do ensino remoto e simulacros de EAD para prosseguir com o ano letivo quando as escolas fecharam. Naquela época, os comentários de boa parte da opinião pública em redes sociais e outras mídias era “os professores terão o seu trabalho reconhecido nesta pandemia”.

Corta para 2021.

A pandemia continua descontrolada no Brasil e em apenas nestes 4  primeiros meses do ano já temos mais mortes pela covid-19 do que em todo o período de 2020. Batemos marcas terríveis como 3 mil, 4 mil mortes diariamente e avançamos para 400 mil vidas ceifadas por uma doença que é evitável e já tem vacina. E é neste cenário, causado por novas cepas do coronavírus, reaberturas apressadas, relaxamento com as medidas de biossegurança e protocolos defasados que estados e cidades estão reabrindo as escolas para o retorno às aulas presenciais. Os professores, que conhecem o "chão de escola", se declaram contra esta reabertura porque não há segurança para a comunidade escolar. É o que basta para os professores e professores serem rotulados como “vagabundos”, “vadios” e outros termos ofensivos.

E pensar que muita gente acreditava que sairíamos melhores desta pandemia.

Um deputado federal, cujo nome prefiro omitir para que em breve volte ao esgoto de onde saiu e dele não se tenha lembrança, afirmou recentemente que “só os professores não querem trabalhar na pandemia”. O exemplo foi seguindo pelo prefeito de Salvador, que ao anunciar o retorno às aulas presenciais para o início de maio, afirmou que “os professores são os únicos servidores públicos que não estão trabalhando”.



Tais declarações, por mais absurdas e levianas que sejam, carregam uma ideologia há muito estabelecida. Qual professor nunca ouviu alguém perguntar se “além de aula, você também trabalha?”. Pergunta antiga que reflete o desconhecimento do que é realmente o trabalho do professor. Uma aula não surge como um passe de mágica: é preciso método, planejamento, sequência didática, habilidade para estabelecer conexões com os conteúdos das disciplinas e o cotidiano dos alunos. É preciso também preparar o material que será utilizado, os textos, os capítulos dos livros didáticos, a reorientação de conteúdo para aquela turma que sente dificuldades, os vídeos, enfim, tudo isso é trabalho.

A aula, na verdade, começa muito antes do profissional entrar em sala de aula. Quando o professor ou a professora está ali na frente da sala expondo o conteúdo, houve toda uma preparação. Experimente chegar diante de uma turma de 40 alunos do 6º ano do ensino fundamental sem um planejamento definido para 50 minutos de aula e sem contar com o “plano alfabeto” para as eventualidades de uma sala de aula: plano A, plano B, plano C...

Em relação aos políticos que declararam tais absurdos, não passa de desonestidade intelectual e mais uma tentativa de pressionar os professores perante a opinião pública como se estes profissionais fossem os culpados pelo fechamento das escolas desde o ano passado. Tentam transformar os professores nos vilões da história. É curioso que essas figuras falem em “trabalho”, porque é justamente isso o que eles não fazem: com um ano inteiro de escolas fechadas, nada ou quase nada foi feito por estes políticos no sentido de minimizar as desigualdades sociais, acesso à internet para o ensino remoto, reorganização do espaço escolar e infraestrutura dos prédios das unidades. O presidente negacionista Jair Bolsonaro vetou o projeto de lei 3477/20 que previa acesso à internet gratuita aos estudantes e alunos da rede pública e também tablets para alunos do ensino médio.

Isso é só um exemplo de como essa gente “trabalha”. Quem está se virando e lidando com todas essas dificuldades no ensino remoto são os professores. Sem a formação continuada em tecnologias digitais, o que se viu foi uma verdadeira rede formada pelos docentes onde um que sabia um pouco mais ajudava ao outro e lá estavam os professores recorrendo aos tutoriais no Youtube, baixando programas e aplicativos para gravar e editar vídeo aulas, reuniões virtuais para definir as melhores estratégias sobre como essas aulas e atividades chegariam aos alunos sem internet.

VAGABUNDOS, NÃO!

A carga de trabalho dos professores aumentou nesta pandemia com o ensino remoto. Não há mais horários e nem períodos de descanso: o celular notifica mensagens durante o tempo todo. Os professores e professoras iniciam o seu trabalho pela manhã e não têm hora para concluir. As professoras precisam se equilibrar entre as atividades escolares e as atribuições domésticas, sobretudo se forem mães solo. E estão adoecendo. Em uma sociedade que louva e admira os chamados digital influencers e coaches que pregam produtividade em tempo integral, poucas horas de sono e condenam o ócio e o lazer, por que os professores são chamados de termos como “vagabundos” pelos ignorantes?



A concepção de trabalho ainda vigente é o modelo presencial e sob o controle de um chefe, com cartão de ponto e horários definidos, tal como a rotina de uma linha de montagem. Estar em casa e fazer o chamado home office é, para muitos, um privilégio que se confunde em “moleza” — e também a sensação de que essas pessoas podem “enrolar” durante o expediente sem supervisão. Um trabalho intelectual é visto como algo que não exige grandes esforços.

Além disso, ainda perdura uma visão tradicional (no pior sentido) e bastante equivocada sobre os professores e professoras identificados como sacerdotes que trabalham por amor e as “tias” carinhosas que cuidam das crianças. Nada contra quem segue o sacerdócio e tampouco as tias, porém relacionar os professores às características comuns a estas figuras inviabiliza o reconhecimento dos docentes como trabalhadores e profissionais. Não à toa que matérias jornalísticas mostrando professores e professoras enfrentando enchentes pedalando quilômetros para levar atividades aos alunos, utilizando azulejos da cozinha de casa como quadro, pagando do próprio bolso os projetos e materiais da escola fazem sucesso porque são vistos como exemplos de amor e heroísmo.

Porém, o inesquecível Paulo Freire matou a charada, como se diz. Em seu livro “Professora sim, tia não”, ele escreveu:

Identificar professora com tia, o que foi e vem sendo ainda enfatizado, sobretudo na rede privada em todo o país, quase como proclamar que professoras, como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve. Quem já viu dez mil “tias” fazendo greve, sacrificando seus sobrinhos, prejudicando-os no seu aprendizado? E essa ideologia que toma o protesto necessário da professora como manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de tias se constitui como ponto central em que se apoia grande parte das famílias com filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias de crianças de escolas públicas.

Os bons professores sob tal ideologia são aqueles que não contestam, não lutam, não se manifestam. São aqueles que ficam no cabresto conformadinhos com as coisas "como elas são". Como vivemos tempos terríveis em que a idiocracia chegou ao poder e os ignorantes ostentam de forma orgulhosa a própria ignorância agressiva e arrogante, o desafio para os professores, que já era imenso com as denúncias de “doutrinação” e outras tolices reacionárias, agora é muito maior: apesar dessas vozes ignorantes serem reduzidas, elas são barulhentas e muitas fazem parte daquela parcela diminuta que detém o poder econômico no país.

Tais vozes são amplificadas e desvirtuam debates que deveriam ser sérios e pautados em evidências científicas e fatos — e quando secretários da educação utilizam argumentos como “shoppings, bares e restaurantes estão abertos, por que só as escolas continuam fechadas” é um sinal de que o senso comum e superficial das redes sociais tomou conta de uma área que deveria ser tratada como maior atenção e cuidado.



Atenção e cuidado que os professores dedicam aos seus alunos mesmo no ensino remoto. A atenção e cuidado que falta à comunidade escolar quando governantes decidem reabrir escolas durante uma pandemia sem controle. Somos um país brutalizado, indiferente em grande parte nesta tragédia humanitária que traz a reboque a fome, a falta de perspectivas e que normaliza 3 mil mortes diárias pela covid-19 e quando pessoas se organizam e querem preservar suas vidas são chamadas de “vagabundos”. Retrato da normose que se instalou por aqui e a cura será muito difícil.

Triste fim de um país em que professores precisam fazer greve para continuarem vivos.

                                             *** 

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E tenha uma boa leitura! :-) 



4 comentários:

  1. O texto exprime tão bem o que nós professores sentimos, que fiquei um tempo parada aqui pensando em o que comentar. E continuo sem saber, porque tudo está ali, tão completinho. É revoltante, é angustiante a situação que passamos. Sim, sei que comentei já em outras mídias que a situação onde moro e trabalho é diferente. Mas sabe, empatia? Pois é, ela que faz com que eu continue compartilhando e explicando porque é perigoso reabrir escolas de forma irresponsável, apenas para satisfazer uma parcela ruidosa da população que se deixa levar pelo senso comum. E o triste é que muitos desses é que detém o poder que outros lhe conferiram através do voto.
    Enfim, continuemos lutando, mesmo cansados, porque largar a toalha ainda não é opção.
    Abraços, Jaime!

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    1. Marina, muito obrigado. Sim, seguiremos lutando porque sabemos que estamos do lado certo e também sabemos do que somos feitos.

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  2. Olá Jaime!

    Primeira vez que passo por aqui e caí de cara neste texto tão necessário. A situação em que nos encontramos é de fato assustadora!

    Sou uma das milhares de professoras que perderam seus empregos ainda nos primeiros meses de pandemia. A situação do desemprego afetou principalmente os docentes que atuam na Educação Infantil, que é o meu caso.

    O trabalho remoto exige e muito! Além da adaptação curricular, pensar em materiais, estratégias, gravar e editar vídeos exige além de muito tempo, a aquisição de novos conhecimentos para conseguir dar conta das demandas.

    A reflexão que você propõe é necessária! Dissolver a ideia do senso comum de que professores não trabalham, ainda mais nesse tempo político que nos encontramos com tantas aberrações e imbecilidades.

    Um abraço!

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    1. Eliana, seja bem vinda. Receba minha solidariedade. O que estamos presenciando ao longo de todo este período da pandemia na área da educação é desolador. Continuaremos a fazer a nossa parte, pois é um trabalho árduo dissolver este senso comum e buscar pela valorização profissional. Um abraço!

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