Um mundo difícil

Um mundo difícil

Recentemente acompanhei de perto o caso de uma senhora de 73 anos na saga para conseguir algum atendimento para restabelecimento de seu telefone fixo e internet residencial. Não havia pendências de pagamento ou na situação cadastral: o telefone ficou mudo e a internet sumiu.

Após 12 dias em contatos com a operadora de telefonia e promessas nunca cumpridas de enviar técnicos ao local, ela desistiu e fechou acordo com outra empresa — que também prometeu efetuar os serviços em dia e horário agendado. Ninguém apareceu. A paciência desta senhora esgotou e, após passar longas horas e minutos se “comunicando” com chatbots através de menus labirínticos no WhatsApp, desabafou: “Está cada vez mais difícil viver neste mundo”.

O desabafo desta senhora é comum não apenas entre pessoas de sua faixa etária, que se queixam das dificuldades em lidar com as tecnologias e da impessoalidade nos atendimentos via digital; entre os jovens, as queixas e angústias estão relacionadas a pressões por produtividade integral, instabilidade profissional em trabalhos precarizados e mal pagos. E tudo isso em meio à ascensão e fortalecimento de ideologias extremistas das quais os discursos de ódio e preconceitos diversos são estranhamente sedutores para muitas pessoas, tornando o mundo um lugar perigoso e muito mais difícil para se viver.

No início deste século XXI inúmeras expectativas foram geradas com a revolucionária internet e suas possibilidades fantásticas de democratização da informação, do conhecimento e novas formas de interagir e trabalhar. O futuro parecia promissor e brilhante. Como diz um velho ditado, grandes expectativas podem criar grandes frustrações: a realidade da grande rede nas mãos de um punhado de empresas, bilionários e seus algoritmos viciados é bem diferente daquele sonhado.

Este é o cenário que demonstra o triunfo do capitalismo e neoliberalismo. O filósofo Byung-Chul Han fala em hipercapitalismo, um sistema do qual “a pessoa humana é reduzida ao valor de cliente ou de mercado”. [1] E prossegue: “O hipercapitalismo faz com que todas as relações humanas se tornem relações comerciais. Toma da pessoa humana sua dignidade e a substitui por valor de mercado”. O autor ainda relaciona o capitalismo ao impulso de morte, de destruição, pois a acumulação de capital cria a ilusão de poder crescente. As mudanças climáticas causadas pela ação humana na destruição sem freios das florestas, biomas e das áreas verdes nas cidades em nome do “crescimento” oferecem um bom exemplo disso: os grandes capitalistas e seus defensores se julgam imunes à crise do clima.

O relatório “Novas Ameaças à Segurança Humana no Antropoceno”, publicado pela ONU em 2022, aponta que a maioria das pessoas não enxerga um futuro promissor. Não é difícil entender os motivos. O suposto “progresso” dentro do atual modelo de desenvolvimento não oferece segurança e a pandemia global deixou evidente a nossa fragilidade e o tamanho dos problemas que precisamos lidar. A tecnologia, saudada como redentora de nossas inquietações, em muitos casos fomenta a desigualdade e exclusão.

A maior crise de todas

O mundo passa por uma crise de esperança. Esta é uma afirmação que pode soar bastante pessimista. No entanto, falar em “esperança” parece otimista ou até mesmo ingênuo, sobretudo quando instituições, movimentos sociais e membros da sociedade civil que outrora ofereciam essa visão também parecem ter desistido ou se acomodaram ao sistema. O que fazer?

Quem dera eu tivesse alguma solução. Acho mesmo que o mundo como conhecemos está acabando e nos encontramos em uma transição — o que virá depois é papo para futurólogos tentarem descobrir. O que posso dizer sinceramente é que precisamos ter coragem. Não foi isso o que Guimarães Rosa tão bem escreveu sobre a vida? A coragem de se posicionar é importante — diante de toda a conjuntura que lembra em partes o besteirol assustador do filme “Idiocracy”, não sucumbir à mediocridade e insensibilidade são grandes feitos.

Parecem ações vagas e até insignificantes, mas nada disso. A essa altura da vida não tenho mais pretensões em mudar o mundo e tampouco os pensamentos de Fulanos e Sicranos, porém continuarei a compartilhar experiências, leituras, escritas e aprendizados por aí, seja na sala de aula ou numa roda de conversa. Sempre há quem esteja disposto a ouvir e ter boas conversas presenciais esqueçam redes sociais, não percam tempo em “debates” nestes espaços desenhados apenas para o descartável e a discórdia.

Talvez isso possa ajudar. Talvez isso seja uma forma de manter a esperança, pois como escreveu Paulo Freire, a esperança precisa da prática para tornar-se algo concreto e não um eterno “esperar”. Gosto dessa ideia e mais ainda de Ariano Suassuna, com suas sábias palavras: “O otimista é um tolo; o pessimista, um chato; bom mesmo é ser um realista esperançoso”. 

Em tempo: a senhora do início deste texto conseguiu resolver o problema da linha telefônica e internet após contar com uma mãozinha das pessoas ao seu redor. Neste mundo difícil, o que a gente menos precisa é de bots e IA, e sim de um toque da boa e velha humanidade que parece perdida, mas ainda existe.



[1] Capitalismo e impulso de morte: ensaios e entrevistas. 1ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.

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