As saudosas noites de um São João que não existe mais
A época do ano mais aguardada pelos
nordestinos corresponde às festividades juninas. Ao longo do mês de junho,
ocorrem festas por todo Nordeste seguindo a tradição herdada dos portugueses em
celebrar os santos católicos Antônio, João e Pedro. As cidades se mobilizam na
decoração típica e nos preparativos de grandes espetáculos como as quadrilhas e
shows musicais.
Quem é de fora e não vivencia todo esse
movimento pode até estranhar e não conseguir entender a importância do São João
para o nordestino, mas além de toda a tradição e cultura, é um excelente
negócio: as festas juninas de 2024 poderão injetar até R$ 4 bilhões na economia do
Nordeste, segundo estimativas. Na Bahia, por exemplo, foram mais de 1,7 milhões de turistas atraídos
pelos festejos em várias cidades do interior, o que aqueceu a rede hoteleira e
os comércios locais.
É, de fato, uma festa saborosa e
democrática: mesmo para quem é cintura dura como eu e não dança forró, vai se
deliciar com as comidas típicas à base de milho, amendoim e mandioca. São
irresistíveis as delícias dos bolos de milho e de tapioca, de iguarias
maravilhosas como o mugunzá, a pamonha, a canjica e o amendoim cozido, este
sim, impossível de comer um só.
Sai a tradição, entra a política
Toda essa tradição, no entanto, parece que vai perdendo força a cada ano. Nos shows musicais as prefeituras contratam (a peso de ouro) artistas populares famosos de ritmos alheios à tradição nordestina. Até DJ de música eletrônica faz show em festa junina. A cantora Elba Ramalho criticou novamente a falta de músicos de forró nas festas, entendendo que estes artistas precisam ter mais espaço.
De fato, a cantora tem
razão: basta uma olhada na programação dos shows nas cidades do Nordeste e
constatamos a forte presença de cantores do agronejo, a moderna música
sertaneja. Além desses, tem pagode (!), axé (!!) e até funk (!!!) nessas festas
juninas.
Isso não fortalece apenas a economia das cidades, é igualmente estratégia política. Uma festa que movimenta a
economia de uma cidade pequena é vista como uma grande realização dos prefeitos
e seus grupos, funcionando como verdadeiros comícios que exaltam a administração municipal — mesmo que a cidade tenha um péssimo IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano) e deficiências em questões relacionadas à
Saúde, Educação e Infraestrutura.
Estes shows que parecem mais festivais
como o "Rock in Rio" sem rock ou um Villa Mix descaracterizam a tradição regional; no entanto é a força
da grana e dos ganhos políticos que acabam perdurando. Mas tem coisa pior: um
São João sem as comidas típicas é um golpe muito forte não apenas na tradição,
mas também na riqueza cultural e gastronômica de um povo.
Não tem milho, mas tem Leite Ninho
Fui a uma dessas festas gigantescas na noite em que a escala de shows contava com artistas do agronejo e um DJ brasileiro famoso, o Alok. Eu não aprecio nenhum desses artistas e ritmos, então pensei que seria tolerável por causa da comida. E a decepção: nada de milho, de mandioca ou amendoim. Havia hambúrguer, batata-frita, hot-dog, refrigerantes... não fosse pela cerveja e outras bebidas alcoólicas, diria que estava em um McDonald´s qualquer.
Na noite seguinte, fui a um espaço que
prometia ser mais tradicional, mas as comidas também seguiam outras receitas,
como bolo Ninho, bolo de chocolate com Oreo... não consigo entender como temos
uma diversidade alimentar tão rica e substituímos isso por alimentos
ultraprocessados cuja “riqueza” consiste em doses elevadas de açúcar, sódio,
dezenas de aditivos e conservantes — tais alimentos, aliás, fazem muito mal
para a saúde e também afetam o cérebro, prejudicando até mesmo a cognição e o
humor.
Talvez o verdadeiro espírito junino
ainda esteja nas pequenas vilas, roças e nas famílias que cultivam os costumes
e acendem uma fogueira para contarem histórias tomando licor e comendo
espigas de milho. Entendo perfeitamente as benesses para a economia das cidades
com os festivais grandiosos, mas é preciso conciliar e equilibrar os eventos
com as ricas tradições nordestinas. Se sucumbirmos à força do dinheiro,
perderemos algo mais precioso: a nossa identidade.
A identidade que fez o saudoso Luiz
Gonzaga cantar uma das mais belas letras de nosso cancioneiro em “Noites
Brasileiras”:
Ai
que saudades que eu sinto
Das
noites de São João
Das
noites tão brasileiras nas fogueiras
Sob
o luar do sertão
E por falar no mestre Lua, as músicas
dele continuam sendo as mais tocadas durante o período junino, ao lado de outros
clássicos do gênero como Dominguinhos. Oxalá continuem assim, resistindo e preservando
a nossa inestimável cultura e identidade.
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