A era dos picaretas

 

      No romance “A vida de Lazarilho de Tormes”, publicado em 1554 na Espanha e de autoria anônima, nos deparamos com o miserável Lázaro, que perambula por cidades espanholas servindo a amos tão desventurados quanto ele. Um desses amos é um escudeiro que ostenta a aparência de um nobre, um fidalgo do reino, mas não passa de um falido que não consegue sequer meios para se alimentar e tampouco pagar o aluguel da modesta habitação – o escudeiro dá no pé e deixa as chaves e o problema nas mãos de seu criado, o pobre Lázaro. 

     O romance se encaixa no estilo “romance picaresco”, de muito sucesso em terras espanholas durante os séculos XVI e XVII. Seus protagonistas são os chamados “pícaros”: personagens de baixa condição social e que tentam vencer na vida através de trapaças e “espertezas”, sem se importarem com os princípios éticos. Da palavra “pícaro”, de origem árabe, inventamos o “picareta” para nos referirmos aos golpistas e “espertos”. 

      Ao longo da história a picaretagem sempre foi presença constante em todos os meios sociais e muita gente se deu bem. O escudeiro de Lazarilho faria grande sucesso no século XXI e conseguiria de fato posições destacadas na sociedade, pois mesmo nestes tempos em que praticamente todos os dados de nossas vidas estão disponíveis na internet, a picaretagem continua sendo colocada em prática e em alguns casos, de forma muito bem sucedida. 

    A picaretagem mais aplicada nestes tempos é a falsificação de títulos acadêmicos. Pessoas que fazem cursos rápidos ou breves participações em eventos universitários turbinam seus currículos como se tais certificados fossem mestrados, doutorados ou pós-doutorados, o famoso PhD – e isso sem contar em monografias e teses plagiadas sem o menor pudor. Quase tivemos um ministro da Educação, vejam que ironia, com tais predicados. No entanto, temos a ministra da cidadania afirmando que era detentora de um mestrado em Educação e quando foram verificar era mais uma mentira: o título de “mestre”, segundo a senhora à frente do ministério, não se tratava de um título acadêmico, e sim “bíblico”.   

    Provavelmente a área em que mais encontramos a picaretagem de forma explícita é na área do coaching. O coaching, segundo definição na Wikipedia, “é uma forma de desenvolvimento na qual alguém denominado coach (“treinador”, em inglês), ajuda um aprendiz ou cliente a adquirir um objetivo pessoal ou profissional específico através de treinamento e orientação.” Seja através de vídeos, livros ou palestras de grande efeito motivacional, temos coaches em várias áreas: educação, administração, relacionamentos e, claro, finanças. 

     A fórmula é muito parecida ao método utilizado pelo escudeiro de Lazarilho de Tormes: uma boa imagem, vocabulário mais ou menos rebuscado, boa oratória e postura confiante já são suficientes para convencer milhares de pessoas a seguirem os valiosos “conselhos de sucesso”. Para passar maior credibilidade, basta turbinar o currículo com títulos pomposos e usar frases de famosos bem sucedidos. Apesar de não se enquadrar como coach, foi assim que uma falsa jurista enganou milhares de pessoas em redes sociais e até instituições de ensino forjando um bacharelado em direito e diversas titulações em que não há registros nas universidades. Bem, a moça não tem titulações de bacharelado, mestrado e nem doutorado, mas agora terá estelionato, falsificação ideológica, plágio e exercício irregular da profissão no currículo, ou melhor, na ficha. 

     Os picaretas sabem muito bem vender o seu peixe: tem picareta endividado dando dicas de educação financeira, tem coach de relacionamentos interpessoais que é incapaz de dar um bom dia ao vizinho, tem criminoso bancando o guru espiritual para cometer crimes sexuais. Muitos desses se consolidaram como “digital influencers” arrebanhando milhares de fiéis seguidores e audiência em suas redes sociais e plataformas de vídeos.  

     E, claro, ganhando muito dinheiro até mesmo no complicado mercado editorial em um país com baixos índices de leitura. As livrarias foram tomadas por obras com títulos “foda-se” nas capas, com inúmeros exemplos e conselhos para alcançar uma vida bem sucedida. É autoajuda mesmo, apesar dos autores negarem de pés juntos. De qualquer forma, mérito deles, pois identificaram o caminho até o pote de ouro: em tempos de crises e incertezas, as pessoas querem respostas rápidas e soluções para os seus problemas. Com a força do pensamento positivo às 4 da manhã e das boas vibrações com o universo, evidente. 

   Ao final do romance o nosso Lazarilho se dá bem, digamos: conseguiu alguma ascensão social, um trabalho regular e casou-se com a amante de um vigário, um casamento arranjado para que o religioso pudesse manter o seu romance. Em troca, Lazarilho teria alimentos, roupas e proteção. Este é o destino provável de muitos picaretas: viver prisioneiro de aparências. 


Ilustrações: do autor 

Um comentário:

  1. Fiquei interessada em ler esse romance, confesso que nunca tinha ouvido falar.

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