Censores nunca leram Machado de Assis


Brasil, 2º ano da Nova Era. Escritório do DALFAM – Diretório de Avaliação de Livros para as Famílias. No 5º andar do luxuoso prédio, uma reunião entre o diretor geral e o seu secretário sobre o veto e liberação de livros para escolas, bibliotecas.

- Sr. Diretor, aqui está a lista dos livros que serão submetidos à avaliação
- Ótimo, vamos fazer um pente fino nessas obras com conteúdo inadequado para nossas crianças e nossos jovens. Essa lista é muito longa?
- Bastante. Isso pode demorar...
- Droga, vou perder a live do presidente! Vamos começar, assim terminaremos logo. Qual o primeiro da lista?
- “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
- Cuba? É isso mesmo? Nem preciso ler: já vi que é coisa de comunista. Fora!
- Mas, senhor... é um livro do Machado de Assis.
- Machado? Isso é código para disfarçar o martelo. Martelo e a foice, entendeu? Com certeza é coisa de militante de esquerda! Não quero esse livro nas escolas e bibliotecas para doutrinar nossos jovens e crianças! Próximo.
- “Macunaíma, o herói sem caráter”, de Mário de Andrade.
- Que absurdo! Queremos heróis com caráter e retidão para servir de referência para nossas crianças! Que livro pervertido, temos que mudar isso aê. A literatura brasileira da próxima década será heroica e será nacional!
- Hã, senhor...
- Não quero saber de suas observações, secretário, tô nervoso! Fora com esse Macu aí. Próximo!
- “Contos de Terror, de Mistério e de Morte”.
- Credo, isso não é literatura para a nossa juventude. Onde já se viu, deve ser um livro bem pesado!
- É um clássico, senhor... de Edgar Allan Poe.
- Quem é esse cara?
- Era, senhor: um escritor norte-americano do século XIX, considerado o “pai” da literatura de mistério e suspense.
- Essa foto aí na contracapa é ele?
- Sim, é ele. Teve uma vida difícil e morreu jovem, coitado.
- Morreu de que?
- Complicações com a bebida.
- Com essa cara só podia ser mesmo um bêbado, um degenerado! Queremos exemplos edificantes para nossos jovens, não um pé de cana que escrevia sobre morte e terrorismo.
- É sobre terror, senhor.
- E daí? Esse monte de letra aí, terror, terrorismo, tudo a mesma coisa. Fora com o livro desse bebum! Próximo livro!
- “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca.
- Ah, este parece bom, finalmente. Abra e leia um trecho, secretário.
- “As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o Ano-novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não tem culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos e...”
- Puta que pariu, esse livro tem palavrão demais, porra! Não podemos liberar um livro desse para adolescentes, caralho!
- Hã... senhor?
- Foda-se! Essa linguagem chula não será tolerada na Nova Era! Fora com essa merda, próximo livro!
- Bom, é mais um do Rubem Fonseca...
- Essa não! Quantos livros deste filho da puta tem aí?
- Uns 18.
- Fora! Fora com todos eles! Como esses livros foram publicados? Maldita Lei Ruanê! Esses caras todos mamaram nas tetas do estado para produzirem um monte de porcaria degenerada. Droga, secretário, essa lista só tem livro de gente comunista, bêbado, pervertido... ainda bem que estamos aqui para defender a tradicional família cristã e o cidadão de bem. Mas diga-me ao menos um livro que eu possa aprovar, unzinho só.
- Bom, senhor... tem esse aqui: “Minha luta”.
- O título parece soar bem. De quem é?
- Adolf Hitler.
- Bom, apesar desse cara ser de esquerda, até que ele tinha umas ideias boas. Vou liberar esse livro aí, pois não quero ficar marcado como intolerante. Afinal de contas estamos em uma democracia com plena liberdade de expressão, certo?

***

Referência: Feliz Ano Novo / Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de bolso)

6 comentários:

  1. - Aproveita e tira esse tal de Novel da lista também. Moda não é assunto de macho!
    - Quem?
    - Esse Novel ali ó. Vestido de noiva, autor: Graphic Novel.

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    1. kkkkkkkkkkkkkkkkkkk, rindo para não chorar pois esse diálogo é perfeitamente possível.

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    2. "Isso de Novel deve ser coisa de novela" 😂

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  2. Mais um texto certeiro! Como diz Gabriel, o Pensador: "Até quando você vai ficar usando rédea?/Rindo da própria tragédia(...)".
    O Brasil está ficando surreal, nunca imaginei que a censura de que ouvi falar nas aula de História láá no final dos anos 90 agora estaria voltando desta forma. Mas é aquele ditado, quem não conhece a história está fadado a repetí-la. Medo do que nosso país está se tornando.

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    1. Obrigado, Marina. Os sinais são muito evidentes sobre o rumo que estamos seguindo. 😔

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  3. Muito bom! Uma forma de resistir a essa conjuntura....

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