Sinto falta de Eduardo Galeano




Eduardo Galeano é um escritor uruguaio, falecido em 2015. Notem que eu não escrevo “era” ou “foi” porque Galeano é imortal em suas palavras e livros. Uma de suas obras mais conhecidas, provavelmente a maior, é “As veias abertas da América Latina”, de 1970. Um livro com gosto de sangue e revolta ao falar sobre a exploração econômica e dominação política no continente.

No entanto gosto bastante de outro livro do uruguaio: “De pernas para o ar: a escola do mundo ao avesso”, de 1999. As ilustrações do artista mexicano Guadalupe Posada são um espetáculo à parte na edição da L&PM. Galeano é um atento observador dos acontecimentos e nesta obra ele faz uso de forte ironia e sarcasmo para compartilhar suas impressões ao que chama de “mundo ao avesso” - tanto que na introdução ele lembra de Alice, imortalizada na literatura por Lewis Carroll e no cinema através de filmes e animações:

Há cento e trinta anos, depois de visitar o país das maravilhas, Alice entrou em num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela

As janelas, em 2019, se multiplicaram: hoje aparelhinhos que nos cabem à palma das mãos mostram o mundo em tempo real em imagens e vídeos contínuos que tentamos fechar as janelas para respirarmos, mas é quase impossível. Notem: estamos no século XXI e ainda perdemos o fôlego aos gritos e indignados com absurdos diários na esperança que nos ouçam.

Foi o que tentaram os jogadores brasileiros Taison e Dentinho, do Shakthar Donetsk, na Ucrânia. No clássico local contra o Dinamo de Kiev, os atletas brasileiros ouviram insultos racistas das arquibancadas – no caso, torcedores do time adversário imitando “macacos” quando a bola chegava aos brasileiros. Taison não aguentou: gritou, mostrou o dedo médio aos racistas e chutou a bola em direção a esses, paralisando o jogo. Deveria ser aplaudido, mas ganhou cartão vermelho do árbitro e suspensão de uma partida.

Se negros são punidos por serem antirracistas neste mundo ao avesso, neonazistas recebem proteção e perdão da Justiça. Aconteceu em Itajaí,Santa Catarina: dois homens colaram cartazes enaltecendo Adolf Hitler (um “herói”, segundo o impresso nos postes) e o juiz achou que isso não era prova suficiente que configurasse “incitação ao nazismo”. As redes sociais dos acusados eram repletas de publicações e símbolos nazistas, mas o magistrado considerou que tudo não passava de “brincadeira”. E com isso mais gente quer “brincar”: em Santa Catarina há 69 grupos nazistas em atividade, número inferior apenas a São Paulo, com 99 grupos – até agora.

No mundo ao avesso, ser sobrevivente e ter bom senso é perigoso e precisa de escolta policial. Na Itália, a senadora Liliana Segre terá à sua disposição dois agentes para que possa circular em segurança. Liliana tem 89 anos e escapou da morte no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, em 1945. Esta senhora, só alguns anos mais jovem do que minha avó, cometeu um ato terrível como senadora: propôs a instauração de uma comissão extraordinária para combater crimes de ódio, como racismo, antissemitismo e incitação à violência por motivos étnicos e religiosos. Recebeu como prêmio mensagens diárias de ódio.

Penso em Galeano escrevendo sobre esses fatos em 2019 e sua ironia nas palavras para traduzir a revolta. Tenho certeza de que escreveria o quão ridículo é encontrar grupos neonazistas em Feira de Santana, no sertão da Bahia, e em outras cidades do Nordeste. Talvez lembrasse de uma grande composição de Chico Buarque para lembrar a esses brasileiros do que é feito o brasileiro:

O meu pai era paulista 
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro 
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano 
Foi Antônio Brasileiro 

Estas foram somente algumas amostras do que tem acontecido neste mundo de pernas para o ar. Não à toa que o nosso uruguaio deixou um recado ao final do livro: “O autor terminou de escrever este livro em meados de 1998. Se você quer saber como continua, ouça ou leia as notícias do dia a dia”.

E vamos ouvindo e lendo as notícias diariamente e, na avalanche de informações que saltam das novas janelas, acontece o inevitável: também viramos ao avesso. Nos acostumamos de maneira indiferente e até passiva a normalizar atos, palavras e símbolos que há muito deveriam ser enterrados profundamente - e temos a impressão de que a sensatez é que foi enterrada. Citando novamente Alice no País dos Espelhos, lembro da Rainha de Copas afirmando: “Pode chamar de absurdo se quiser (...), mas já ouvi absurdos que fariam este parecer tão sensato quanto um dicionário”.  

Para Galeano um absurdo já era motivo para não se calar e tampouco tratar com indiferença. Sigamos o seu exemplo - ou continuemos assistindo embasbacados o mundo de pernas para o ar. 

2 comentários:

  1. Uma análise objetiva e necessária do que estamos vendo ao nosso redor. Parece que o mundo, depois de tanto esforço para caminhar à frente, recebeu uma ordem de "meia-volta, volver!" e agora estamos involuindo, e o que é pior, sob aplausos.
    Apesar de tudo, ainda tento cultivar esperança.
    Abraços!

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