Roger Waters e o FEBEAPÁ da estupidez



O Festival de Besteiras que Assola o País, mais conhecido pela sigla FEBEAPÁ, foi uma criação do grande escritor e jornalista Sérgio Porto, que adotava o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. O FEBEAPÁ foi uma coleção de 03 livros publicada na década de 1960 em plena ditadura militar e usava do humor para satirizar os atos cometidos pelo regime e também declarações de generais, políticos e o “high society” da época. Sérgio Porto faleceu antes que o Ato Institucional número 5 (o AI-5) fosse institucionalizado e inaugurasse o período mais duro e violento do regime militar.

Se o grande Stanislaw Ponte Preta estivesse vivo, teria farto material para lançar novas coleções do FEBEAPÁ. Eu não tenho dúvida nenhuma de que ele incluiria no festival de besteiras que assola o país a reação de várias pessoas à turnê que o ex-baixista, cantor e compositor do Pink Floyd está fazendo no Brasil. Por conta do seu engajamento e posicionamento político que sempre foi uma característica muito marcante em suas músicas, álbuns e shows, Roger Waters está sendo acusado, acredite, de ter sido contratado pelo PT (Partido dos Trabalhadores) ou sabe-se lá por quem para fazer “showmícios” e campanha política durante o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Até o Ministro da Cultura embarcou nessa.  



A turnê "US + Them" 

Waters está em turnê mundial desde 2017 quando lançou seu mais recente álbum: “Is this the life we really want?” (“É esta a vida que nós realmente queremos?”). Como em seus álbuns anteriores e nos últimos trabalhos com o Pink Floyd, as canções trazem forte pegada política. O álbum tem como alvo principal o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas também toca em temas complexos e atuais como o drama dos refugiados e, claro, uma constante desde “The Wall”: a guerra, causada por governantes “with no fucking brains” (“sem a porra de um cérebro”), como está nos versos de uma de suas novas canções. 

Sempre investindo muito no aspecto cenográfico dos seus shows, Waters leva todo esse protesto para o palco, com os imensos telões, balões, projeções a raio laser e animações que compõem o que ele chama de “espetáculo da resistência”. É, sem dúvida, um espetáculo impressionante, emocionante e inesquecível, tanto musicalmente (as eternas e clássicas músicas do Pink Floyd e do seu trabalho solo) quanto visualmente.



Este mesmo show (banda, repertório, cenário, engajamento político) tem sido levado a todos os países onde a turnê aporta – Estados Unidos (na terra de Donald Trump!), Canadá, Europa, Oceania e América Latina, quando finalmente chegou ao Brasil justamente no período de uma das eleições mais polarizadas e agressivas da história recente do país - as datas dos shows no Brasil, aliás, foram anunciadas ainda em Dezembro de 2017 (eu garanti o meu ingresso para o show em Salvador tão logo iniciaram as vendas). Sua passagem por terras brasileiras não passa despercebida de modo algum: durante seus shows, Waters bate pesado em Trump e em políticos classificados pelo artista como fascistas em ascensão no mundo, como Vladimir Putin (Rússia), Marine Le Pen (França), Sebastian Kurz (Áustria) e Jair Bolsonaro (Brasil). 

Ao se depararem com o nome do candidato brasileiro da extrema-direita, eleitores e apoiadores de Bolsonaro presentes no show explodiram em vaias e a coisa ficou mais tensa quando apareceu no telão o lema “Ele não”, que surgiu nas redes sociais e ganhou as ruas em grandes manifestações contra o candidato que acumula em seu histórico declarações a favor da tortura e da ditadura militar, além do desprezo a homossexuais, mulheres, negros e até mesmo a defesa de fuzilamento de um ex-presidente da República - declarações que valeram o título de "político mais repugnante do mundo" concedido por um site australiano. Obviamente que um político deste porte e com grandes chances de ser eleito presidente entraria no alvo de Roger Waters em sua turnê pelo Brasil. Em 2017 até o presidente Michel Temer entrou na dança do ex-Pink Floyd.

Empty Spaces (espaços vazios)

A furiosa e intempestiva reação de vaias e xingamentos daqueles que se dizem fãs de Pink Floyd e foram ao show de Roger Waters demonstra não apenas o desconhecimento sobre o trabalho que o músico realiza há mais de 40 anos: é uma amostra perfeita do FEBEAPÁ, o festival de besteiras que assola o país revivido em tempos sombrios e de ostentação orgulhosa da ignorância. Pelas redes sociais, espaços que o escritor italiano Umberto Eco afirmou (até de forma exagerada) darem voz para uma legião de imbecis, vídeos e comentários indignados de apoiadores de Bolsonaro espalharam por todas as direções com extenso repertório de ofensas e acusações possíveis e imaginárias ao artista. As queixas mais comuns eram de pessoas bradando que pagaram ingressos para assistirem a um show de rock, não a uma manifestação política. Chega a ser ridículo: quem conhece a trajetória do artista sabe muito bem que suas letras e shows, desde os tempos do Pink Floyd, são marcadas por um posicionamento político muito claro. A estes fãs raivosos, Waters deixou um recado:

“Se vocês, meus fãs, acharam que músicos devem apenas tocar suas músicas… é obviamente apenas errado. Não, não devemos. Nós temos responsabilidade como políticos e também como músicos. Eu acredito que todos os artistas, não interessa qual tipo de arte você faça, todos têm responsabilidades de usar a arte para expressar ideias políticas e criar demandas em favor dos direitos humanos para todos.”  Fonte: TMDQA

É impossível dissociar o trabalho de Waters com a política: em “Amused to death” (1992) ele mira suas letras contra o então presidente dos EUA, George Bush, a Guerra do Golfo e trata de temas como a influência da TV e a guerra sendo tratada como entretenimento, além do massacre da Praça da Paz, na China; em “The Final Cut” (1983), último álbum com a formação do Pink Floyd, lá estão as letras mirando contra a guerra das Malvinas, Margareth Thatcher (primeira-ministra inglesa) e Galtieri (ditador argentino), além de citações a Brejnev (líder da então União Soviética) e a campanha soviética no Afeganistão. Se quiserem um bom exemplo do conteúdo deste álbum, ouçam e prestem atenção à letra da música "The Fletcher memorial home": ali está um apanhado do que Waters defende em críticas bastante pesadas a governantes tiranos e ditadores, como bem definidas em versos como "did they expect us to treat them with any respect?" (eles esperam que os tratemos com algum respeito?). 

Nem vou citar sobre as temáticas que podem ser encontradas em álbuns como “The Wall” e “Animals” (este baseado no livro “A revolução dos bichos”, de George Orwell) para não alongar este texto. Mas deixo a sugestão para que procurem entender e apreciar estes dois espetaculares trabalhos do Pink Floyd, lançados ainda na década de 1970: continuam muito atuais e relevantes. Assim são formados os clássicos.   



Don´t be another brick in the wall! (Não seja outro tijolo no muro)

Ou seja, quem vai ao show do Roger Waters deveria saber exatamente o que esperar dele, principalmente quem se diz fã do Pink Floyd. Se eu vou a um show da Ivete Sangalo, do Capital Inicial, da Anitta, do U2, da Madonna ou dos Racionais MCs sei exatamente o que vou encontrar. Vaiar um artista que desempenha o seu espetáculo de forma competente e coerente com a sua carreira é bobagem. O gosto é de cada um e concordando ou discordando de algumas posturas e ideias, não alegue ignorância quanto ao conteúdo ou espere neutralidade de certos artistas. No caso de Waters não é uma questão de ser “show voltado para inteligentes” e nem precisa muito esforço para saber como poderia ser a apresentação, basta uma simples pesquisa no São Google ou no Youtube: vídeos, repertórios, o que ele falou ou exibiu nas telas no Canadá, na Dinamarca, na Austrália e em outros países em que turnê passou, tudo pode ser facilmente encontrado. 

Quem se dispusesse a pesquisar saberia que o espetáculo de Waters causou polêmica nos EUA, principalmente nos estados sulistas que mais apoiam Donald Trump; e por conta do seu engajamento político, vem perdendo dinheiro, ou melhor, deixando de ganhar: US$ 4 milhões  de verbas de patrocinadores que não gostaram nem um pouco de seu posicionamento contra o governo de Israel. O artista não recua e segue em frente com suas ideias. Diante disso, alguém esperava mesmo que um artista com a personalidade e histórico de Roger Waters não incluiria em seus protestos Jair Bolsonaro, um político que pode ser eleito presidente do Brasil e vem sendo observado com preocupação pelo mundo todo?  

É constrangedor ver um artista do porte e história de Roger Waters aos 75 anos e ainda com vitalidade para uma impressionante turnê mundial ser xingado pelo o que faz e defende há anos por pessoas que vão a seus shows e ser acusado de fazer parte em um suposto esquema de corrupção partidário. É constrangedor, repito, e também vergonhoso: na era da informação literalmente na palma da mão, é muito fácil ler as traduções das músicas, entrevistas, biografia e resenhas sobre seus álbuns para conhecer mais sobre o artista e não deturpar sua obra e tampouco seus ideais; no entanto, como o pessoal anda usando internet mais para espalhar Fake News e outras tolices a rodo e não se preocupa muito com interpretação de texto, não me surpreenderia nem um pouco se aparecesse a história de que o Lulinha (filho do ex-presidente Lula) está patrocinando a turnê de Waters pelo Brasil com o dinheiro da Friboi e da venda de uma Ferrari banhada a ouro. E muita gente acreditaria, pois o FEBEAPÁ continua firme e fornecendo material de sobra por aqui. 




Charges e fotos: arquivo pessoal do autor.  

2 comentários:

  1. Desde que começou este processo eleitoral, me veio à mente quase todos os dias o FEBEAPÁ... e vemos isto firme e forte. Ponte Preta teria farto material para muitas edições desta obra. E essa censura ao Waters foi a vitória da ignorância orgulhosa. Abraços e boa semana, na medida do possível!

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