"O brasileiro é o abutre de si mesmo"



O título desta humilde prosa tomei emprestado do maior cronista esportivo brasileiro de todos, o inesquecível Nelson Rodrigues. Engana-se quem pensa que tais crônicas de Nelson são apenas sobre futebol: o seu olhar arguto, dramático e muitas vezes irônico sobre o esporte mais popular do país ajuda a entender e a desvendar a alma do brasileiro.

Durante um mês os jogos da Copa do Mundo da FIFA na Rússia e da seleção brasileira foram o centro das atenções e discussões em todos os lugares: onde houvesse uma roda de conversa no bar, no ponto de ônibus, no intervalo do trabalho, o assunto dominante era sobre futebol e a seleção de Tite, Neymar e companhia. Nas redes sociais, este grande boteco do século XXI, não foi diferente. Entre memes e piadas sobre o cabelo de Neymar, a eliminação prematura da seleção alemã e da apatia de Messi na seleção argentina, naturalmente havia também espaço para comentários e opiniões diversas, inclusive de uma galera conhecida como “lacradora” – aqueles que buscam likes e visibilidade pegando carona (muitas vezes de forma oportunista) nos assuntos em evidência nas mídias.

Enquanto você torce...

Dois padrões de discursos se destacaram neste mar de opiniões. A turma que resolveu politizar a Copa do Mundo com o típico maniqueísmo e polarização que tomou conta dos debates no país lançou mão daqueles velhos e surrados chavões que sempre retornam de quatro em quatro anos – desde “Enquanto você grita gol, os políticos te roubam” até “A Copa do Mundo desvia a atenção das pessoas para o que é realmente importante no Brasil”, passando pelo manjadíssimo “pão e circo”. Para muitas pessoas que concordam com esta linha de pensamento, quem acompanhava os jogos e torcia pela seleção brasileira era rotulado como “alienado”, “ingênuo” ou “manipulado pela mídia”.

Copa do Mundo acontece a cada quatro anos e dura somente um mês. Da mesma forma que o sujeito apelidado de "chato do IDH" (Índice de Desenvolvimento Humano) aparecendo de quatro em quatro anos para lembrar sobre o quanto nossos demonstrativos em Educação, Saúde, Segurança, etc. estão distantes dos índices de países mais desenvolvidos, surge também o termo “alienado”, cuja origem é do latim alienarus (alienus) e que pode ser entendido como “estar alheio”. Quem é o alienado, afinal? O sujeito que torce a cada quatro anos pela seleção na Copa do mundo, que brinca no carnaval uma vez ao ano e acompanha a telenovela após um dia de trabalho ou o sujeito que não assume a responsabilidade por suas escolhas preferindo reproduzir discursos superficiais e abrindo mão da autonomia inclusive de pensamento?  

Eu odeio o Neymar!

O outro padrão era encontrado na turma que odeia o Neymar. Falar sobre o craque rende discussões, cliques e visibilidade – sobretudo quando a raiva e o ódio pelo jogador escorrem pelos teclados. Em diversas crônicas Nelson Rodrigues evoca a figura do que ele chama de cretino fundamental. Este sujeito, nas palavras do dramaturgo, é aquele que “gostaria de tocar fogo no escrete e, depois, sapatear em cima das cinzas, (...) o sujeito que fala contra o individualismo de nosso craque”.

Criticar o jogador Neymar em relação a aspectos técnicos e táticos durante a partida é uma coisa; outra coisa é desqualificar seu talento e fazer juízo sobre o caráter de uma pessoa baseado em corte de cabelo, a um comportamento narcisista/exibicionista (vale lembrar que isso é um traço comum a muitos jovens de sua geração) ou a um exagero nos gestos em algumas das inúmeras faltas sofridas pelo jogador. Dizer que tal comportamento atrapalha seu desempenho nos gramados é mais uma das falácias que não se sustentam: basta verificar a trajetória e o histórico do jogador com seus impressionantes números e conquistas no futebol para descartar esse tipo de argumento.

Uma das manifestações mais absurdas que eu vi durante a Copa foi um texto se referindo a Neymar como “psicótico e mau caráter”. O texto, compartilhado por milhares de pessoas, é de autoria de um jornalista condenado por injúria racial contra um colega de profissão. Hipocrisias como estas eram e são facilmente encontradas nas redes, ambiente ideal onde encontramos abutres prontos para agredir, odiar e emitir vereditos com pretensa autoridade e dedos em riste nos teclados dos notebooks e smartphones.


É até interessante acompanhar pessoas que bradavam sobre o “desequilíbrio emocional” de Neymar sendo incapazes de lidar com uma simples divergência de ideias em redes sociais. O que mais se viu nestes espaços foi a multiplicação de dublês de psicólogos e psiquiatras “indicando” tratamento psicológico para o jogador. O país de 200 milhões de técnicos de futebol se tornou o país de 200 milhões de “psicólogos” de ocasião. Na verdade trata-se simplesmente de desconstrução e destruição, nada mais – ou nas palavras de Rodrigues, atos para “estraçalhar nossos bens”. Temos aí a junção do cretino fundamental com o invejoso pelo sucesso pessoal, lembrando uma expressão atribuída a Tom Jobim.

O brasileiro é um frustrado sebastianista


Não se trata de “pachequismo” ou coisa do tipo. Torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo não significa o endosso à corrupção da entidade que organiza o futebol (no caso do Brasil, é a CBF - Confederação Brasileira de Futebol) e tampouco deixar de torcer representa um engajamento político efetivo. Neymar não é imune às críticas, desde que justas e que não resvalem para o ódio gratuito propagado pelo "espírito de manada" que impera nas redes sociais, principalmente. Se as "encenações" do jogador são exageradas, a reação dos "haters" (palavra da língua inglesa que pode ser traduzida para "odiadores") beira a histeria. 

Com exceção dos haters que buscam somente visibilidade e devem ser ignorados (ou denunciados quando seus comentários adquirem cunho preconceituoso e tomam a dimensão de ameaça), encontramos o modelo de brasileiro que cria muitas expectativas sobre “eles. Quem são “eles”? “Eles” são as pessoas que resolverão os problemas brasileiros e darão alegrias ao povo: o craque que decidirá o torneio sozinho e será exemplo de liderança em conduta ética e moral no país da Lei de Gerson e da "Lei de Jô"; o político que rapidamente dará um jeito no país, o empresário-apresentador de TV inovador que mudará o modelo de desenvolvimento do Brasil. 

Esperamos pelo Salvador da Pátria na bola, na política, na economia, nas causas sociais da mesma forma como os portugueses aguardavam pelo rei Dom Sebastião. O sebastianismo é uma crença portuguesa do século XVI em que o citado rei, desaparecido durante uma batalha no Marrocos, ressurgiria triunfante para levar o país a tempos de glórias e conquistas. A nossa crença no salvador da pátria disfarça, de certa forma, a nossa omissão e apatia diante de cenários em que deveríamos agir e reagir de forma mais ativa. Evidente que não é a única justificativa para tal comportamento, porém é fato que preferimos utilizar o sujeito indeterminado “eles” em vez do pronome “nós” porque é mais cômodo não assumir responsabilidades - sejam elas sociais, familiares, profissionais, afetivas, ambientais, etc. 

Como é preciso escolher um bode quando algo dá errado, os frustrados explodem em uma espécie de histeria coletiva descarregando toneladas de lixo emocional sobre aquela pessoa ou aquele evento que não correspondeu às suas expectativas que podem ser em boa parte irreais ou até mesmo injustas a depender a quem é direcionado tal esperança ou desejo. Não é possível esperar que um jogador de futebol encarne o papel de redentor das mazelas políticas, sociais e éticas do país e nem podemos imaginar que escrever um texto enorme contra o futebol ou a Copa do Mundo nas redes sociais rotulando pessoas de acordo com suas convicções ideológicas promoverá mudanças significativas em nosso cenário atual. Como afirma o ditado popular, o "buraco é mais embaixo".  


Não é o Neymar que vai resolver o baixo salário dos professores e nem o futebol em época de Copa do Mundo (ou qualquer outro campeonato) que vai alienar as pessoas para os problemas do Brasil. Nelson Rodrigues recomendava aos chamados cretinos fundamentais e abutres de redações o divã de psicanalista e uns vinte anos de análise profunda. No fundo, dizia ele, era problema de autoestima e o cronista tinha razão, acredito. Ao não saber lidar com frustrações, o brasileiro torna-se abutre de si mesmo e é preciso amadurecer – o mesmo amadurecimento que tanto cobram de Neymar estende-se a nós como cidadãos.


ATUALIZAÇÃO: A seleção brasileira foi eliminada nas quartas-de-final da Copa do Mundo ao perder para a boa seleção da Bélgica por 2x1. Um dos gols da seleção belga surgiu após cobrança e escanteio em que a bola desviou no jogador Fernandinho, do Brasil. Gol contra e que abriu caminho para a classificação da Bélgica. Após o jogo, vários torcedores brasileiros, inconformados com a derrota e desclassificação do Brasil, passaram a atacar Fernandinho com ofensas, xingamentos e racismo em seu perfil no Instagram – e até mesmo familiares do jogador não foram poupados. Um triste e criminoso episódio em mais um caso de “caça a um culpado” ou a um bode expiatório para que frustrados pudessem descarregar palavras de ódio e seus preconceitos.

Referência e dica para leitura: Brasil em campo, crônicas de Nelson Rodrigues. Org. Sônia Rodrigues. Rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 2012.

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