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Dessacralizar a literatura.
“Zeus é o Mr. Catra do além!”. A expressão divertida foi
dita por uma de minhas alunas após um bate papo sobre Thor, personagem de HQ
que ganhou as telas de cinema. Outros alunos também participaram deste bate
papo informal e falaram sobre Hércules, Afrodite, Poseidon e outros deuses e
semideuses. A pergunta que fiz a eles pode parecer meio ridícula, mas segui em
frente: “onde vocês aprenderam todas essas coisas sobre mitologia grega?”. Por que a pergunta pode parecer ridícula?
Porque estou em uma escola, então seria óbvia a resposta, não é? Que nada: “A
gente leu nos livros do Percy Jackson!”.
Confessei minha ignorância em admitir que não conhecia Percy Jackson, mas logo fiquei sabendo que trata-se de personagem criado pelo norte-americano
Rick Riordan que já vendeu mais de 50 milhões de cópias de seus livros com a
série “Percy Jackson e os Olimpianos”. Riordan traz a mitologia grega para o
século XXI quando o jovem Jackson descobre que é filho de Poseidon e passa por diversas
aventuras envolvendo todo o panteão dos deuses, semideuses e heróis
mitológicos. Não é difícil entender este fenômeno literário entre a turminha: é
o tipo de livro que eu adoraria ter lido na adolescência. E hoje, também.
Livros como os da série Percy Jackson, Harry Potter,
Divergente e autores como John Green, Kiera Cass e Jojo Moyes são aguardados e
lidos com entusiasmo pelo público jovem, que formam grupos de debates sobre as
obras, produzem vídeos no Youtube, postagens em redes sociais, etc. Não é maravilhoso
ver jovens entusiasmados com livros e falando sobre suas impressões de leitura?
Tudo isso é muito salutar para o incentivo à leitura. Infelizmente, nem todos
pensam assim.
Clássicos e modismos
Não são poucos os literatos e acadêmicos que classificam
estas leituras como “superficiais” ou simples modismos literários e
mercadológicos que logo serão esquecidos. Imediatamente são feitas comparações com os
clássicos da literatura universal, mas precisamos mesmo deste tipo de
comparação? Autores como Shakespeare, Tolstoi, Dostoiévski, Poe, Kafka e tantos
outros têm o seu lugar garantido no sacrossanto cânone literário e continuarão
sendo referência para muita gente. Se um jovem leitor chegar até eles, que bom;
e se nunca alcançá-los ou não gostar da leitura de alguns destes clássicos, não
vejo problema nenhum: os escritores contemporâneos também têm seu valor
literário e há muita gente talentosa por aí.
Quanto aos modismos literários e
questões ligadas ao mercado, eles sempre existiram. Os romances e novelas de cavalaria eram extremamente populares na Europa da Idade Média, principalmente
na Espanha, Inglaterra, Portugal, Itália e França. Podemos dizer que entre os
séculos XV e XVII, graças à invenção da prensa de Gutenberg, os romances de
cavalaria eram “moda”, sobretudo em histórias envolvendo o Rei Arthur e o Santo
Graal. Um grande clássico surgiu neste período: O engenhoso fidalgo Dom Quixote, de
Cervantes. Lembro de uma entrevista de Umberto Eco falando que “os gêneros
literários e pictóricos são criados por imitação e influência. (...) Se
descubro que escrevendo um romance de amor posso ganhar dinheiro, não vou me
privar de tentar por minha vez”. O escritor francês Daniel Pennac chama isso de literatura industrial, ou
seja, uma literatura que explora o filão do momento. O sucesso de um livro como
“Cinquenta tons de cinza” despejou no mercado uma enxurrada de livros com a
mesma temática. As editoras precisam sobreviver. Em consequência encontramos também
várias matérias nas mídias trazendo referências sobre literatura erótica: lá
estavam os clássicos “O amante de Lady Chaterlley”, “Lolita” e autores como
Sade, Anaïs Nin, Bocaccio e até o "Kamasutra". Tem espaço para todos.
É bom lembrar que muitos destes gigantes da literatura em
seus tempos não alcançaram sucesso absoluto ou imediato: Scott Fitzgerald,
autor do clássico “O grande Gatsby”, mantinha em seu escritório 120 bilhetes de
recusa para seus contos; “Moby Dick”, de Melville, também foi recusado por não
ser “interessante” para jovens ingleses; um dos casos mais impressionantes
aconteceu com Rudyard Kipling, autor de “O livro da selva” (onde o menino
Mowgli tornou-se personagem imortal da literatura): despedido do jornal onde
trabalhava, Kipling leu na carta de demissão um “Lamento, sr. Kipling, mas o
senhor não sabe escrever em inglês”. E a lista de recusas é imensa, passando
por George Orwell, R.R Tolkien e J. K. Rowling, somente para citar alguns. No
caso das mulheres a coisa era pior, como no caso das irmãs Brontë: tiveram que
adotar pseudônimos masculinos ou seria muito difícil a publicação de obras como
“Morro dos ventos uivantes” e “Jane Eyre”. Muitos dos livros hoje clássicos
foram considerados como modismos, superficiais ou mesmo ousados para suas
épocas.
Dessacralização
“Oh, mas como alguém pode não gostar de Shakespeare, que
absurdo!”, dirão os acadêmicos. Bem, Tolstoi detestava Shakespeare, apenas para
dar um exemplo sobre como os clássicos não são absolutos em termos de
preferências literárias. Vejo algumas pessoas envergonhadas em admitir que
leram obras consideradas clássicas e não gostaram ou não entenderam nada. Ora,
não há nenhum problema: tem muito livro e autor clássico por aí que realmente é
muito chato; além disso, certos estilos podem não cair no gosto do leitor. O já citado Daniel Pennac, autor do ótimo “Como um romance”, chama a
atenção sobre este aspecto: “Bem, temos a nossa escolha: ou vamos pensar que é
nossa culpa, que temos uma telha de menos, que abrigamos uma porção irredutível
de burrice, ou vamos bisbilhotar do lado da noção tão controvertida do gosto e
buscar estabelecer o mapa dos nossos gostos cuidadosamente”. Ele recomenda a
segunda opção e é um bom conselho que vale tanto para os jovens e também para os adultos.
O que precisamos na verdade é dessacralizar a literatura. Desmitificar
o senso comum de que livros e leitura “é coisa só pra gente inteligente” e
retirar o livro de um pedestal inalcançável para boa parte da população. Dessacralizar
a literatura é também deixar de lado a vaidade intelectual e academicismo
quando falamos de determinados gêneros textuais e literários. Durante muito
tempo gêneros e estilos literários como ficção científica, policial, romântico, cordel e tantos outros foram considerados “literatura menor” (também chamado de paraliteratura) e desprezados tanto pela
crítica, escolas e academia de modo geral. Tais posturas não contribuem para ações
de incentivo à leitura principalmente entre os mais jovens, pois estigmatizam
de forma pejorativa estes gêneros e seus leitores. É extremamente frustrante
para um leitor que gosta de determinado autor ou obra ouvir que aquele livro é “uma bobagem” ou, pior, não é literatura. Uma crítica literária embasada e
criteriosa sempre é bem vinda e desejável (menos para os fãs clubes, claro),
mas o pedantismo em classificar a literatura como “alta” ou “menor” por
associação a um autor ou estilo literário é bobagem.
É interessante lembrarmos que vivemos em um país onde 44% da população não lê e as políticas para incentivo à leitura esbarram em dificuldades. Sem dúvida há outros fatores que também contribuem para índices
baixos em relação à leitura, porém gosto de lembrar do caso das Histórias em Quadrinhos:
a própria escola tratava a leitura de gibis como prejudiciais ao
desenvolvimento cognitivo, pois havia a “concepção errônea de que os quadrinhos
são ingênuos, infantis” (SANTOS); hoje, no entanto, a escola acolhe as
HQs como recursos didáticos importantes na formação de leitores. Eu formei meu
hábito de leitura a partir dos gibis do Pato Donald e Tio Patinhas. Daí para
outros estilos e textos foi um pulo. Com muitas pessoas, creio, também
funcionou assim.
Dessacralizar a literatura é admitir que a leitura pode e
deve ser uma agradável diversão. Quem também pensa assim é o escritor Italo Calvino, na apresentação do sua novela O visconde partido ao meio: “creio que
divertir seja uma função social, corresponde à minha moral; penso sempre no
leitor que deve absorver todas estas páginas, é preciso que ele se divirta, é
preciso que ele tenha também uma gratificação”.
Quer gratificação melhor do que ler um livro e se divertir com sua
leitura?
Por falar em Calvino, ele é também autor do livro “Por que
ler os clássicos”, onde ele enumera diversos pontos sobre o que é um clássico
literário e sua leitura. Vale a pena. Em um de seus ensaios, ele afirma que “as
razões do fascínio de um livro (...) são feitas de tantos elementos
imponderáveis”. Não nos importemos tanto
com as famosas (e polêmicas) listas que trazem uma relação de livros que
DEVEMOS ler: o que vai estimular a leitura de um livro são os “elementos
imponderáveis” que farão a pessoa amar uma obra de Rick Riordan e seus
Olimpianos ou Machado de Assis com seus contos, por exemplo.
Apenas leia, independente dos rótulos. E divirta-se com as aventuras de bruxos, viaje com alienígenas em naves espaciais, vibre com os heróis, passe raiva com vilões, encante-se com a poesia e suas imagens: você é o leitor e cabe a você o veredito da obra. Boa leitura!
Referências:
Carrière, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro / Jean-Claude Carrière, Umberto Eco. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Sant´Anna, Afonso Romano de. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
Santos, Roberto Elísio dos. Para reler os quadrinhos Disney: linguagem, evolução e análise de HQs. São Paulo: Paulinas, 2002.
Carrière, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro / Jean-Claude Carrière, Umberto Eco. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Sant´Anna, Afonso Romano de. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
Santos, Roberto Elísio dos. Para reler os quadrinhos Disney: linguagem, evolução e análise de HQs. São Paulo: Paulinas, 2002.
Pennac, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
Adoro Percy Jackson e já tenho 36 anos!
ResponderExcluirParabéns pelo Blog!