Está tudo absolutamente normal. Será?


O dicionário Webster em sua versão online possui uma seção chamada “word of the day” (palavra do dia). É bem interessante: não apenas apresenta o significado e a categoria gramatical que a palavra pertence, mas também podemos descobrir a sua etimologia (origem e formação), sinônimos e quando foi usada pela primeira vez em língua inglesa.

Todos os dias recebo via e-mail uma nova palavra em inglês. Não faz muito tempo que a “word of the day” foi uma bastante comum e de fácil entendimento: normal. É um cognato, ou seja, uma palavra em inglês que tem o mesmo significado e grafia em português. Ninguém tem dúvidas sobre o seu significado: algo comum, habitual, conforme a um modelo, valor social/cultural ou padrão. A própria etimologia da palavra indica tais significados, também.  

É curioso pensar um pouco mais sobre esta palavra e como ao longo dos séculos o conceito sobre “normal” foi estabelecido e passando por modificações. Pessoas vendidas em mercados negreiros e tratadas por “peças” durante muito tempo foi atividade vista como normal, da mesma forma que crianças de 4 e 5 anos de idade limpadoras de chaminés e até mesmo a perseguição de mulheres acusadas de bruxaria para serem queimadas em praça pública.  

Leio algumas notícias na imprensa em que os jornais e autoridades gostam de destacar a palavra "normal" e mesmo "normalidade". Por exemplo, uma aluna é assassinada dentro de escola atingida por "bala perdida" e poucos dias depois divulgam que as aulas estão "acontecendo normalmente", mesmo que o bairro esteja passando por uma situação de insegurança em que muitos estudantes não consigam chegar à escola. Este é apenas um exemplo dentre vários que demonstram de que forma somos moldados pelo "funcionando normalmente", enquanto vamos para o trabalho espremidos como sardinhas enlatadas nos ônibus lotados, deixamos crianças em escolas caindo aos pedaços em seu entorno de violência, aceitamos passivamente políticos envolvidos em esquemas quase inimagináveis de corrupções e nos acostumamos com uma rotina que envolve medo, inseguranças, violências.

Fico imaginando de que forma seremos vistos daqui a 100 ou 200 anos – caso a humanidade não se extermine até lá. Se atualmente ainda temos escolas que ameaçam desabar sobre as cabeças de alunos e professores, se temos professores recebendo treinamento para situações de guerra, se temos um trânsito que mata 47 mil pessoas por ano, se temos uma sociedade que se entope de medicamentos antidepressivos e de agrotóxicos nos pratos em suas refeições, nada isso deveria ser considerado normal. Uma frase atribuída ao filósofo e educador indiano Krishnamurti traduz bem este sentimento: “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”.  

De fato, não é saudável, tanto que existe até uma patologia chamada “normose”, um conceito criado pelos psicólogos Pierre Weill, Jean Yves Leloup e Roberto Crema. A normose, segundo os autores, “é o resultado de um conjunto de crenças, opiniões, atitudes e comportamentos considerados normais, logo em torno dos quais existe um consenso de normalidade, mas que apresentam consequências patológicas e/ou letais”. Experimente fazer algo que não esteja nos padrões do que é considerado como normal e imediatamente recairão críticas sobre este comportamento. “A normose”, prosseguem os autores, “nos impede de sermos quem realmente somos”. Todos os dias temos agentes e instituições ditando modelos e valores sobre o que devemos fazer, consumir e agir no dia a dia – e ai de quem não segui-los: será chamado de “anormal” e termos semelhantes. Quem gostaria de ser chamado assim?

Ao longo dos séculos certas situações e comportamentos “normais” foram mudando e é isso que dá alento para o futuro e sobre as perspectivas para futuras gerações. Difícil manter algum otimismo diante de um panorama aparentemente desfavorável, mas procuro sustentar um fio de esperança, até porque mudanças na sociedade não acontecem do dia para a noite. Levam tempo e envolvem coragem e resistência. Felizmente os inconformados estão por aí, quebrando certos modelos de “normalidade” e tal como aconteceu em outros tempos, são rotulados como ingênuos, idealistas, malucos, perigosos, inimigos da ordem.  

A pergunta feita pelo escritor Tolstói há mais de 100 anos após observar e indignar-se com a organização da vida na sociedade russa, ainda é válida para estes nossos tempos: “mas precisa mesmo ser assim?” É o que questionam os inconformados e considerados idealistas. Creio que precisamos ouvir mais o que estes têm a nos dizer e também nos juntarmos às fileiras de inconformados e agir de alguma forma. Claro que seremos rotulados com aqueles termos nada lisonjeiros, mas é impossível não lembrar do inspirado John Lennon que cantou “você pode achar que eu sou um sonhador/ mas eu não sou o único”. 

Com certeza não é, John. 

6 comentários:

  1. Essa semana ouvi de um professor diante de algumas dessas questoes:
    -Viramos platéia!
    Pois é!

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  2. Jaime, que maravilha estar aqui e ter a oportunidade de ler um texto tão bem construído, nítido, transparente, bem elaborado, abundante de pesquisas e totalmente inspirador para os nossos dias!!

    Ah, e não posso me esquecer de suas ilustrações que ultrapassam, inclusive, o cerne da questão de tão completas, exclusivas e bem desenhadas!! Parabéns!!, Tornou- se um expert no assunto!! Já é um multimídia completo!!

    Afinal, creio que somos condicionados a sermos robotizados, seguindo um padrão previamente estabelecido e se nos desviamos desses conceitos, ultrapassamos a linha da normalidade e tornamo-nos "esquisitos", "anormais" e quase páreas da sociedade... Ou simplesmente inconformistas, como muitos dizem!
    Já passou da hora de fazermos uma mudança e deixar de ser passivos... Temos que sair da plateia e tornarmos os gerenciadores das nossas próprias vidas ou tempos ainda mais obscuros chegarão por aí...e tenho muito medo disso...

    Bem amigo, de qualquer forma, foi um prazer imenso poder me encher de cultura em seu cantinho. Aproveito para desejar um restante de semana maravilhoso!!
    Ah, obrigada pelos comentários nos meus últimos posts sobre as canções dos Guns N' Roses! Agora estou encantada com a arte de edição de vídeos. E os faço exatamente para espairecer e não enlouquecer de vez...hihihihihi
    Obrigada, de coração!! :))) E viva o verdadeiro Rock and Roll!!! Uhullllllll
    Beijos amigo!! :)))))

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    1. É bem isso, Adriana: somos condicionados. Eu que agradeço gentil visita e comentário. :)

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  3. Pois é Jaime, eu às vezes acho difícil manter algum otimismo diante de um cenário como esse. Mas como a esperança é a última que morre. A gente vai seguindo e acreditando que um dia as coisas mudam e tudo vai ficar bem.
    Um texto que me fez pensar... A charge é muito boa, suas ilustrações sempre são muito criativa.
    Desejo um Feliz Natal e um Ano Novo cheio dos mais perfeitos pensamentos, de uma luz imensa que lhe ilumine os caminhos, e principalmente, com todos aqueles sonhos que só Deus pode permitir que tenhamos.
    Beijos e uma boa semana!

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