Bruxos, vampiros e literatura


A escritora Ruth Rocha fez parte da infância de muita gente com sua vasta obra e textos reproduzidos em livros didáticos. Foi vencedora de quatro edições do Prêmio Jabuti, publicou 130 livros e sua obra mais conhecida, “Marcelo, Marmelo e Martelo” já vendeu mais de um milhão de cópias. Tem autoridade para falar sobre literatura, sobretudo infantil.

No entanto a escritora, que completa 50 anos de carreira em 2015, declarou que os chamados best-sellers de fantasia ( com vampiros, bruxas e dentre eles o famoso Harry Potter) “não é literatura, isto é uma bobagem. É moda, vai passar”. Tal declaração despertou a fúria dos fãs do bruxinho criado pela britânica J. K. Rowling.

Deixemos por um instante esta “polêmica” de lado e vejamos o que diz a pesquisa da Federação do Comércio do Rio de Janeiro sobre hábitos culturais, divulgada recentemente ( Abril, 2015). A pesquisa indica que 70% dos brasileiros não leram um livro sequer em 2014 – 7 em cada 10 brasileiros. E o uso da internet via smartphones ajudou a reduzir o interesse pela leitura entre os mais jovens, segundo a pesquisa.

Sabemos que o desinteresse pela leitura no Brasil é histórico e as causas são diversas – desde a falta de hábito passando pela formação de novos leitores. Voltemos à declaração de Ruth Rocha: será que rotular a literatura vai ajudar na formação destes novos leitores?

É bom deixar claro que a entrevista da escritora é muito interessante. Como discordar, por exemplo, que “literatura é uma expressão do autor, da sua alma, das suas crenças, e cria uma coisa nova”? Aqui entendemos o que Ruth Rocha quis dizer com o artificialismo da chamada “literatura industrial”, termo utilizado pelo francês Daniel Pennac em seu ótimo “Como um romance”- que apresenta os 10 direitos imprescritíveis do leitor e dentre os quais encontramos “O direito de ler qualquer coisa”.

Neste panorama do “qualquer coisa”, Pennac cita estas obras que “não valorizam a criação, mas a reprodução de ‘formas’ preestabelecidas (...) resumindo, uma literatura do ‘pronto para o consumo’”.  Sem entrar no mérito da obra, tomemos como exemplo o sucesso de “50 tons de cinza”: uma enxurrada de lançamentos classificados como literatura erótica tomou conta das livrarias, invariavelmente imitando o estilo (e em alguns casos até mesmo o título) do livro de E.L. James.  É sobre isso que Pennac e Rocha estão falando.

Contudo, milhares de pessoas leem e apreciam estas obras. Como dizer a elas que a sua leitura agradável não passa de uma bobagem? Nem todas as pessoas foram estimuladas ou tiveram a chance para ler autores clássicos da literatura brasileira e mundial e no caso do Brasil é preciso considerar um país onde o índice de analfabetos ainda é elevado e com um modelo de escolarização conteudista e repetitivo que tolhe a curiosidade, a criatividadee a autonomia – o que remete às palavras de Rubem Alves nos alertando que “a leitura nunca pode ser um exercício de automatismo”. Reduzir a literatura a um cânone obrigatório ou preferência pessoal não ajuda no estímulo à leitura – pelo contrário, pode até desestimular. Lembre-se, por exemplo, das perseguições às Histórias em Quadrinhos mesmo na escola: o gênero não apenas era desprezado como também visto como “má influência” para as crianças e jovens. ( hoje, felizmente, as HQs foram reabilitadas e são utilizadas nas escolas

Não precisamos de mais rótulos na literatura. Deixemos que as pessoas tenham suas preferências literárias e assim permaneçam estimuladas para a leitura: com o passar do tempo elas poderão procurar outros estilos, conhecer novos autores e fazer grandes descobertas. “Passa-se de Sabrina e Julia (histórias de belos doutores e de louváveis enfermeiras) a Boris Pasternak e a seu Doutor Jivago – um belo doutor, ele também, e Lara, uma enfermeira ó quão louvável!”, escreve Pennac. Não há nada que se condenar, nada de bobagem: há estilos e gêneros literários para todos os gostos e preferências. Boa leitura!  

17 comentários:

  1. Eu cheguei a comentar no Twitter que discordo do posicionamento da Ruth quanto ao que ela disse sobre Harry Potter, mas que concordo com outras coisas, como a questão dos modismos.

    E uma das partes da fala da Ruth que mais me incomodou foi quando ela falou que bruxos e outros seres sobrenaturais são bobagem, coisa que passa. Mas ela tem livros sobre sacis. Ué? Mas seres sobrenaturais não bobagens? Seres folclóricos só valem se forem da nossa cultura?

    Foi como você disse, a gente não precisa de mais rótulos, a gente precisa de mais gente lendo, porque até um 50 Tons da vida tem sua utilidade. O livro é ruim? É. Mas pessoas que nunca pegaram um livro podem ter se aproximado da literatura por causa dele, e isso não é ruim, ao contrário.

    Leitura tem que ser popular, não tem que ser coisa de elite. A gente tem que parar com os preconceitos literários e enxergar que até um livro ruim tem sua utilidade e que cada um deve ler pelo prazer da leitura e ler, principalmente, o que quiser.

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    1. Exatamente como você bem disse, Lady Sybylla: "Leitura tem que ser popular, não tem que ser coisa de elite". Tem de tudo para todos os gostos. Obrigado pelo ótimo comentário!

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  2. Concordo e acho que não dá pra nenhum autor sair por aí rotulando o que é literatura e o que é lixo. Entendo isso como uma tentativa de “elitizar” a literatura infanto-juvenil ou adulta. Coisa muito semelhante acontece com a música. Até pouco tempo o funk também sofria muito desse rechaço, mas como ele tem se dividido em vertentes (melódico, ostentação, proibidão), pelo menos o primeiro tem sido melhor aceito pelo mercado e pelo público porque possuem um som mais próximo ao pop, tanto que os dois últimos hits da Valesca Popozuda foam melhores aceitos e fizeram mais sucesso do que alguns clássicos da cantora que pendiam mais para o proibidão.

    Pra finalizar, acho que ela cometeu uma gafe ao dizer que contos de vampiros e bruxos são uma moda e que não dá para considerá-los como literatura. Mas porque consideramos clássicos da literatura europeia como Cinderela, O Patinho Feio, João e Maria (vários clássicos adaptados pela Disney) que são do gênero conto de fadas como literatura então? Nenhuma das temáticas abordadas por Crepúsculo e Harry Potter são novas. Podemos considerar Drácula como sendo um clássico e Harry Potter explora muito dos contos de fadas clássicos, implementa elementos da mitologia grega e porque ainda sim não seria literatura? Só porque foi um sucesso em vendas? Vender muitos livros é ruim? Harry Potter eu entendo como uma releitura desses elementos, mas como ainda é recente (1997-2007), acho que também é inevitável que não sofra com o preconceito acadêmico. Estes dois últimos livros, embora eu tenha achado o enredo de Crepúsculo muito ruim e cansativo, são histórias que se passam nos dias atuais (embora Harry Potter tenha um clima medieval em Hogwarts e bem moderno quando ele está na Inglaterra durante as férias de verão) e por não ter o “ar clássico”, aquele ar do século XIX talvez ainda não tenha envelhecido o suficiente para que seja aceito como “literatura que preste”. Enfim. Cada clássico da literatura reflete um pouco de sua época. O Sítio do Pica-Pau Amarelo continha traços do escravismo e de uma sociedade escravocrata, mesmo assim devemos rechaçar sua obra por não ser literatura ou “fazer apologia à interiorização dos negros” como já li por aí? Também acho que não. É como você disse, não podemos sair por aí apontando o que é ou não é literatura baseado em nossas opiniões pessoais. Acho que nem sempre precisamos ler obras cultas e edificantes. É melhor ler 50 Tons de Cinza do que não ler absolutamente nada e ter sérios problemas em interpretação de texto e ortografia.

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    1. Pois é, Peterson, e mesmo esses clássicos da literatura surgiram em épocas onde havia uma profusão de obras nos estilos - Pennac lembra que para um Don Quixote tínhamos centenas de romances de cavalaria no período. Boa lembrança da literatura de Monteiro Lobato e sua contextualização. Obrigado pelo comentário sempre bastante rico!

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  3. Ruth Rocha expressou um ponto de vista particular. Compreendo que tenha criado polêmica, principalmente por ser esta uma autora influente e muitas vezes laureada, mas ainda assim.. é a opinião dela.
    Concordo que não podemos rotular histórias e livros como "literatura" ou "não literatura". Sybylla foi certeira em escrever que está na hora de parar com preconceitos literários, (claro que não podemos deixar de incentivar leitores iniciantes a aventurar-se em vários gêneros), deixando a pessoa ler o que quiser.
    Seu texto foi muito lúcido e oportuno, Jaime.

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    1. Obrigado, Mari! E, no resumo de tudo, deixemos as pessoas lerem suas preferências, sem rótulos e patrulhamentos. :)

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  4. Olá, Jaime.
    Ótima reflexão; acredito que Ruth Rocha tenha colocado seus ressentimentos e preconceitos acima do bom senso na hora em que deu esta mal sucedida opinião, coisa que pode acontecer a qualquer um, a qualquer momento.
    Não há barreiras, temas errados ou imposições à verdadeira literatura, que nada mais é do que a expressão da capacidade humana única de sonhar, que nos torna melhores e deixa nossas aspirações e desejos às gerações futuras.
    Sobre a literatura industrial pré fabricada, uma boa crítica pode ser vista no episódio dos Simpsons " A Farsa do Livro", onde Lisa descobre que a autora de seus livros preferidos simplesmente não existe.
    Abraço, Jaime.

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    1. Valeu, Jacques! Vou procurar esse episódio dos Simpsons, fiquei interessado nessa crítica - bem à Springfield. rs Um abraço!

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  5. Eu fico realmente assustada quando leio certas coisas.Uma escritora da competência da Ruth Rocha dizer uma bobagem como essa.Pior coisa é você emitir uma opinião baseada em seu gosto pessoal com o intuito de denegrir aquilo que não lhe agrada(ou por inveja mesmo).
    Toda escrita que lhe arrebata o coração;toda escrita que te tira da realidade;toda escrita que te traz liberdade de mundo(desde um simples verso até a trilogia de um livro),é literatura sim e merece respeito.

    Beijão,Jaime!
    Dani

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    1. Exatamente, Dani: a leitura que traz toda essa liberdade de mundo e sobretudo de escolha deve ser respeitada. Beijo!

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  6. Que reflexão interessante! Eu acho que toda a forma de literatura, salvo as ilícitas, tem o seu valor. Além disso, devem ser respeitadas. Ela tem todo o direito de não gostar de um estilo, mas depreciar por causa disso? Isso não é crítica, na minha opinião, mas um preconceito explícito. Agora, se o Harry Potter virou modismo, e para alguns isso é um absurdo, não é motivo para ser desconsiderado. Eu conheço crianças/adolescentes que não liam nada, mas depois desse livro descobriu o mundo da literatura. Ponto positivo para o Harry Potter, risos. Beijinhos estalados.

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    1. Aquilo que geralmente é rotulado como "má literatura" pode ser uma porta para outras literaturas, não é, Aline? Muito obrigado! Beijinhos estalados!

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  7. Olá Jaime!
    Concordo com você, eu penso assim também que: “ Reduzir a literatura a um cânone obrigatório ou preferência pessoal não ajuda no estímulo à leitura – pelo contrário, pode até desestimular. Não precisamos de mais rótulos na literatura. Deixemos que as pessoas tenham suas preferências literárias e assim permaneçam estimuladas para a leitura: com o passar do tempo elas poderão procurar outros estilos, conhecer novos autores e fazer grandes descobertas.” Grande verdade! O importante é se informar e desenvolver o hábito de ler e consequentemente abrir novos horizontes de alguma forma! Suas charges são super legais e você escreve muito bem! Parabéns! Boa semana! :-)
    Bjs

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  8. Olá Jaime!

    Concordo com você, eu penso assim também que: “Reduzir a literatura a um cânone obrigatório ou preferência pessoal não ajuda no estímulo à leitura – pelo contrário, pode até desestimular. Não precisamos de mais rótulos na literatura. Deixemos que as pessoas tenham suas preferências literárias e assim permaneçam estimuladas para a leitura: com o passar do tempo elas poderão procurar outros estilos, conhecer novos autores e fazer grandes descobertas.” Grande verdade! O importante é se informar e desenvolver o hábito de ler e consequentemente abrir novos horizontes de alguma forma! Suas charges são super legais e você escreve muito bem! Parabéns! Bom fim de semana! :-)
    Bjs

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    1. Bia, muito obrigado pela visita e pelo comentário! :) E é exatamente isso: ao invés de condenar literaturas, vamos incentivá-las para que novos leitores surjam e ampliem seus horizontes! Bjs!

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