O espírito da manada.

Uma amiga gentilmente me enviou um texto muito interessante (“o tempo é um rio que corre”) da escritora Lya Luft, publicado na revista VEJA no mês de Abril. A escritora fala do seu novo livro e tece considerações interessantes sobre o tempo e a escrita, mas um trecho em especial chamou a atenção e o destaco:

Se conseguirmos escapar ao espírito da manada que nos queria todos conservados eternamente no formol da utilidade, as águas – que não param quando dormimos, usamos o computador, comemos o hambúrguer, choramos no escuro ou cantamos baixinho porque nos sentimos bem – poderão nos levar a uma viagem instigante.”

O termo “espírito da manada” é muito interessante. Outros escritores, em épocas diferentes, já se referiram a tal espírito. Sêneca, na Roma antiga, escreveu que “nada é pior do que nos acomodarmos ao clamor da maioria, convencidos de que o melhor é aquilo a que todos se submetem”. Séculos depois foi a vez de Hermann Hesse: “O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o rebanho”; alguns anos depois Charles Bukowski afirmou que as pessoas “esquecem logo como pensar, deixam que os outros pensem por elas”.

Quantas vezes deixamos de fazer coisas ou suprimimos alguns desejos e vontades com receio de que possa “parecer estranho”? O pensamento que logo surge na mente é “o que os outros vão pensar?”. Esta busca por aprovação externa é natural, afinal todos apreciam o reconhecimento a um bom trabalho realizado ou outro feito – tem a ver com “desejo de apoio social”, nas palavras de Bauman. O problema surge quando a necessidade de tal aprovação torna-se um imperativo e nos anulamos como indivíduos – experimentem pensar ou agir diferente dos padrões de comportamento aos quais fomos condicionados desde a infância: seremos rotulados com diversos termos, alguns nada lisonjeiros.  E desta forma, buscando aprovação, cedemos e acabamos seguindo a “manada", permanecendo na zona de conforto de pertencer à maioria. “Às vezes, te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso.”, eis o que nos aconselha Hermann Hesse em seu ótimo “Demian”.

É claro que algumas opiniões têm peso diferente. Há pessoas em nossas vidas que são confiáveis e suas aprovações/reprovações a alguns de nossos atos e pensamentos são representativos e importantes em determinados momentos.  Cabe avaliarmos o peso que daremos a certas opiniões e mesmo para regras impostas até de modo “inconsciente” pela massa, pela galera. Por isso é fundamental  desenvolver autonomia e segurança necessárias para que não nos acomodemos ao “clamor da maioria” de forma que fiquemos paralisados, com medo da reprovação ao que sentimos, desejamos e queremos viver de forma saudável. 

Difícil não lembrar a conhecida fábula “O velho, o menino e a mulinha”, contada por Monteiro Lobato e da citação de William Shakespeare feita por Dona Benta: “E isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo”.  Remar contra a maré, ir contra o senso comum da manada pode ser um processo realmente trabalhoso, porém trata-se de afirmar a identidade e reconhecer o próprio valor. Fernando Pessoa, com seu heterônimo Alberto Caeiro, nos brinda com suas sábias e encorajadoras palavras:

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, 
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, 
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras”.

24 comentários:

  1. Bom conselho, caro Jaime. Também, acompanhado por tantas ilustres figuras, como não admirar seu texto. Parabéns por pensar assim como recomenda, isso é fácil de se notar, para os seus leitores assíduos.
    Grande abraço.

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    1. Muito obrigado, Waldir! Suas palavras sempre são sábias e motivadoras!

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  2. Texto muito bom, objetivo e certeiro!

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  3. Como sempre, levantando grandes reflexões. Parabéns, Jaime!

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  4. Sempre bom nos livrarmos desses saberes hegemônicos.Nos despirmos do senso comum.Como disse Foucault "Existem momentos na vida onde a questão de saber se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir."
    Vamos da manada aos macacos.Seguimos como toupeiras imersas nessa sociedade utópica,alienada e adestrada.Pois é,Descartes,penso que não estamos sabendo pensar...

    Belíssimo texto,Jaime!Excelente reflexão!

    Beijão!Dani.

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    1. Uma sátira ao pensamento de Descartes: "penso, logo desisto". :) Não lembro onde eu li, mas achei muito engraçada e, de certa forma, pertinente. Muito obrigado pelo seu comentário (sempre enriquecedor), Dani! Beijo!

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  5. Eu amei esse texto! Sério.

    Ok, Não ter medo de realizar coisas e parecer estranho é complicado, metade das cosias que penso, preciso guardar para mim, mas ousar é necessário e essa coisa de precisar de rótulos, não é comigo, não mesmo!

    Beijos! Adorei.

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    1. Obrigado, Camila! Um pouco de ousadia, que seja, é absolutamente necessário - e para isso é preciso quebrar certas convenções e paradigmas. Difícil, mas não impossível. Beijo!

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  6. Jaime, só tenho a dizer que teus textos sempre nos colocam a refletir. Tu sempre aborda questões muito bacanas e sempre me pego pensando bastante após a leitura.
    Nem sempre é fácil lutar por suas próprias ideias e ideais. Muitas vezes somos suprimidos e esmagados, mas se estamos convictos de nossas posições, podemos fazer algo incrível e inovador... ou pelo menos agir de uma maneira fiel a nossa própria essência.
    Boa semana, um abraço!

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    1. Muito obrigado, Fernanda. É sempre bom refletirmos um pouco. :) E se já conseguirmos agir de maneira fiel à nossa essência será muito bom! Abraço!

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  7. Olá Jaime, muito boa tarde amigo!

    É, realmente você sempre surpreende!
    Das inspirações de um texto enviado por uma amiga, conseguiu, apenas diante de um parágrafo instigante, criar um texto fantástico!

    É muita riqueza de detalhes e o que me deu saudades imensas, foi a fábula do “O velho, o menino e a mulinha”. Puxa, como isso me intrigava na infância amigo! rsrs Sabe, bem pequena, com 7 anos de idade- (tinha acabado de ser alfabetizada) ganhei de meu pai, professor na época, a coleção inteira do Monteiro Lobato. Vi as capas coloridas e senti o cheirinho de cada um deles e ingressei no mundo da leitura. Amigo, tenho certeza que, foi diante deste belo presente de meu pai, que comecei a amar os livros. Nossa, eu viajava nas histórias. Isso me marcou tanto que até fiz um adendo aqui para mencionar o quanto foi importante para mim e meu futuro! Incrível não é? :))

    Pois é , é a velha lógica "Maria vai com as outras" Se não seguimos, ficamos para trás e o que os outros vão dizer,ora,ora? Já fui um pouco assim.. isso não me fazia bem. Então, me libertei e agora sigo meus próprios padrões, por mim mesma estabelecidos rsrs

    É claro que estou aberta a opiniões alheias, gosto de ouvir, refletir e tirar minhas considerações.. Mas seguir rótulos, ah não... isso não faz nada, nada bem. Nos transforma em robôs, ficamos pausteurizados, insípidos, sem cor, sem cheiro, sem vontade, sem força e sem vida!

    O bonito é o colorido das opiniões e a mesclagem das ideias. Pegamos elas, adicionamos temperos, misturamos tudo, avaliamos e tiramos o caldinho mais gostoso! Esse é o que mais faz bem!! :)))))
    Amigo, aproveito também para agradecer os belos comentários deixados lá no meu blog tá? Você é de uma gentileza inenarrável!!

    Muito obrigada, parabéns por mais esta excelente reflexão e desejo um belo final de semana adiantado, afinal, hoje já é quinta!
    Para o sábado falta bem pouco não é? rsrs
    Beijos!! :)))

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    1. Oi, Adriana! Eu que agradeço sua sempre simpática e agradável visita! Muito grato! :) Ah, Monteiro Lobato inspirou tanta gente a gostar de ler, não é? Fique à vontade, sempre gosto de ler e ouvir sobre as inspirações de pessoas que apreciam a leitura. :)

      Enfim, muito grato por suas considerações ( "Maria vai com as outras", eu nem lembrei deste termo rs) e fico feliz em saber dos seus progressos. E se esse tempero todo é o que faz bem, ótimo: é só continuar! rs

      Beijos e grato mais uma vez!:)

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  8. Olá, Jaime.
    Ótima reflexão; o assunto citado também é conhecido como "efeito de grupo" e é, até certo ponto, compreensível, já que não é de nossa natureza ficarmos totalmente sozinhos ou vivermos sempre assim.
    Como citastes, o grande problema consiste na pessoa sacrificar seu desenvolvimento interno em prol de uma aceitação social que ela considere desejável naquele determinado momento.
    Lembrei agora que vi o conto do "Velho, o menino e a mulinha" certa vez adaptado no antigo Sítio do Pica Pau Amarelo, que me traz grandes lembranças.
    Valeu pela visita; é realmente ótimo ver meus escritos na forma de livro.
    Abraço, Jaime.

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    1. Jacques, fiquei muito feliz em ver que seus escritos estão em forma de L.I.V.R.O, achei fantástico! Torço pelo seu sucesso! E muito grato pela visita, pelas palavras e pela referência em seu blog e no Facebook. Um abraço! :)

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  9. Jaiminho, querido amigo!
    Retorno com calma. Atualizei hoje o meu blog, e consigo vir aqui, mas teu texto precisa mais de uma leitura :)

    Beijos e te cuida!

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    1. Ops! "precisa de mais de uma leitura"...
      acho que é assim rsrs

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    2. Beijos, querida Cissinha! Logo vou conferir sua produção desta semana em seu blog - sempre muito aguardada, por sinal. :)

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  10. Sabemos o que queremos realmente da vida?Seguir os padrões que já existem desde que nascemos,a fantasia induzida socialmente para a conquista da felicidade,que nos diz onde devemos ir,o que devemos desejar e até mesmo o que devemos sonhar. Sem parar para nos questionar escapamos ,e nos conduzimos para a fantasia compartilhada,a que parece garantir um pacote mínimo de felicidade,ser belo e bem-sucedido. Com um pouco de visão simbólica que é o requinte da mente humana,percebe-se que a sociedade não oferece outra alternativa que não o ter. Com o tempo e a conquista do mínimo ditado pelas regras, passa-se então a se perguntar;eu possuo a mim mesmo? Abandona-se os movimentos coletivos ,e começa uma nova busca, encontrar seus próprios valores. Um abraço Jaime,ler os seus textos só me inspira a fazer mais e mais novas leituras.

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  11. Olá Jaime! Que prazer ler seu texto. Me fez pensar ; será que sabemos o que queremos da vida? Seguir padrões de projeção social estabelecidos desde que nascemos, que nos diz onde ir, o que fazer e até o que pensar, induzidos à fantasia compartilhada do pacote felicidade mínima,( conforto e segurança) .
    Asfixiados com o poder da massa, sem a busca legítima de uma individualidade, onde pessoas estão ligadas por instintos e paixões, ninguém esta minimamente interessado em saber quem eu sou e talvez nem eu mesma esteja.
    Com um pouquinho de visão simbólica, que se diz ser o requinte da mente humana, percebemos que a sociedade não nos oferece outra alternativa que não o ter . Se aventurar, independente dos desejos coletivos , e estabelecer com propósitos claros o necessário para alcançar o ideal de vida, possuir a si mesmo.

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    1. Deide, muitíssimo obrigado por seus ótimos comentários que propiciam mais reflexões sobre o tema e outros temas também. Muito rico. Gostei muito dessa ideia sobre o "escapismo" que você fez referência - o "pacote mínimo" para uma felicidade de fantasia. Muito bom! Mais uma vez, grato! :) Um abraço!

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  12. Retornei, Jaiminho!
    Recordei-me de imediato de algo que aconteceu semana passada. Aqui no RS já estamos em pleno inveroutono :) uns 10 graus durante o dia! E minha filhota teve uma festinha de aniversário na sexta-feira à noite, numa casinha de festas. Enfim, precisave ir bem vestida, mas ao mesmo tempo, bem abrigada. Ela tem um vestidinho da Mônica (da turma da Mônica), que é de lã e bem bonitinho. Negou-se a usar, justificando: "o que meus amiguinhos vão pensar"... - Por quê? - perguntei. Ela respondeu: "Porque a Mônica é muito de criança!" - ou seja, preocupada que a tomassem por uma "Bebê". Ela e seus colegas têm 7 anos, alguns já 8 anos. E as meninas já querem se vestir com padronagens de oncinha, strass, enfim, roupas para adolescente. Minha filha ainda muito criança para ouvir uma lição de "eu", acabei trocando o vestido por outro mais neutro, digamos assim.
    E nós, seres humanos, sempre com essa vontade de sermos incluídos e esse medo de sermos excluídos.
    E concordo totalmente contigo, que há pessoas cujas opiniões são de fato importantes e podem nos guiar. E também entendo que muitas vezes na vida vamos ter ocasiões, em especial de trabalho, em que teremos que nos "enquadrar". Mas de uma forma ou de outra, sempre tentei a autenticidade, e é o que tento na escrita, e percebo aqui contigo, Jaime, em mais um texto muuuuito interessante teu!
    Apenas um adendo. Nada pessoal, mas não consigo gostar dos escritos da primeira pessoa citada em teu texto, me admiro muito que tenha algo de interessante :) (destilei o verbo kkk), mas não me aguentei. Acho muito Veja, meeeesmo! :)

    Beijos!

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    1. Cissinha, você foi ao ponto: "sempre com essa vontade de sermos incluídos e esse medo de sermos excluídos." Bem, o ser humano busca integração e por isso procura aprovação de grupos, principalmente durante a adolescência - e isso chega à vida adulta. Então, é trabalhar com isso para que não se torne um imperativo e possamos desenvolver melhor autonomia e autenticidade! :) Beijo e muito obrigado, como sempre! :)

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