O trânsito e a nossa desumanização


“É no prolongamento da potência da máquina que se encontra, em nossa sociedade, a potência humana perdida. É nele que se livra daquele ser coisificado, castrado, diminuído, constrangido a todo instante. Em última análise, trata-se da busca do orgasmo perdido
”. 
                                                     Ned Ludd, "Apocalipse motorizado". 

O que parecia ser mais uma das centenas de discussões que acontecem diariamente no trânsito, se transformou em assassinato: a médica oftalmologista, ofendida por algo que o motoqueiro e sua carona fizeram, acelerou o seu vistoso veículo em perseguição ao casal na moto até atingi-los. O impacto levou o casal à morte e a médica perdeu o controle do veículo, colidindo em um muro. 

Na fria realidade dos números, o jovem casal da moto engrossará as estatísticas da tragédia que é o trânsito brasileiro: anualmente, mais de 40 mil pessoas perdem a vida nos chamados “acidentes de trânsito” - uma morte a cada 11minutos. A guerra civil na Síria já matou mais de 100 mil pessoas desde o início dos conflitos, em 2011. 

A quantidade de vítimas fatais no trânsito brasileiro assemelha-se aos números de guerra porque é de fato uma guerra: a disputa por espaço nas vias tomadas por carros, o desrespeito às leis mais básicas do Código Brasileiro de Trânsito, a falta de bom senso e de educação, a fiscalização frouxa e comportamentos agressivos ao volante transformam nossas ruas e avenidas em verdadeiros campos de batalha.

O brasileiro, “apaixonado por carro”, não admite “ficar para trás” ou levar desaforo para casa. “No Brasil, quem cede igualitariamente a vez está errado e é sempre admoestado por buzinadas e xingamentos de todos os motoristas”, afirma o antropólogo Roberto DaMatta. O motorista que experimenta conduzir o seu veículo de forma tranquila e seguindo rigorosamente os sinais e as leis de trânsito será considerado o “trouxa” ou o “lerdo”. O Código de Trânsito dá lugar a uma espécie de “código das ruas”, onde prevalece o salve-se quem puder e cada um por si.   

Além da questão social do carro ser considerado um símbolo de autonomia, poder e até mesmo sedução – vide as propagandas exibidas na televisão e internet -, existe um aspecto que é muito bem retratado em um famoso desenho de Walt Disney, o sr. Walker (Pateta): um pacato cidadão que distribui gentilezas e sorrisos para a vizinhança se transforma em um “monstrorista” ao assumir o volante de um automóvel. É esta a desumanização que observamos todos os dias em nossas ruas e avenidas ao melhor estilo Dr. Jekyll e Mr.Hyde, onde aquelas pessoas simpáticas e tranquilas são capazes das piores loucuras a bordo de uma máquina que pode matar. 

E é neste cenário de desconstrução de humanidade caracterizada pela impessoalidade e pelo desejo de status e conquista – um caríssimo veículo importado não pode “comer poeira” de um modesto carro popular, por exemplo – em que nos encontramos. Não importa se o motorista seja médico, juiz ou um operário: a partir do momento em que o outro motorista ou pedestre é visto como um mero obstáculo a ser superado, um inimigo a ser eliminado e não como um ser humano, é sinal inequívoco de que definitivamente chegamos à barbárie. 

REFERÊNCIAS:
Apocalipse Motorizado: A tirania do automóvel em um planeta poluído / Ned Ludd (org.). São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. (Coleção Baderna) 

Fé em Deus e pé na tábua, ou, Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil / Roberto DaMatta; com João Gualberto Moreira Vasconcellos e Ricardo Pandolfi. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.     

19 comentários:

  1. Olá, Jaime.
    Bela reflexão; infelizmente a lei que vigora nas ruas das nossas cidades é a de quem corre mais pode mais, e isso infelizmente não irá mudar.
    Quando, alguns anos atrás, foi lançado o novo Código Brasileiro de Trânsito, achou-se que estas tristes estatísticas iriam mudar, mas o que ocorre na prática é que o motorista infrator recorre as multas que levou e muitas vezes acaba se safando.
    Felizmente não é todo mundo que (praticamente) enlouquece ao dirigir e respeita os demais motoristas, ciclistas e pedestres, infelizmente esse pessoal é minoria.
    Abraço, Jaime.

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    1. Oi, Jacques. Pois é, com o novo Código Brasileiro de Trânsito esperava-se também que a impunidade não fosse uma tônica nos chamados "acidentes" de trânsito - infelizmente ela ainda perdura. Felizmente não é todo mundo que surta. Um abraço e obrigado.

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  2. Olá, Jaime. Assim que li o título de seu texto, logo lembrei do desenho da Disney, retratava muito bem através do Pateta como as pessoas podem mudar atrás de um volante.
    Existem muitas pessoas que respeitam as leis de trânsito, porém a triste realidade é que ainda há gente que não suporta "ser passado para trás", que xinga, buzina, reclama e até chega ao ponto que a médica oftalmologista chegou ( prova de que não é um diploma que deixa alguém civilizado).
    sad but true.

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    1. O desenho do Sr. Pateta é da década de 50, Mari, e veja que pouca coisa mudou quanto ao comportamento do motorista. É algo difícil de ser mudado... Obrigado! :)

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  3. Bem propícia a tua reflexão, Jaime! A lei que vigora no trânsito é a do descaso com o direito do outro. Canso de ser molestada no Elevado do Joá, que está em obras de reforço dos pilares e, para diminuírem os impactos, a Prefeitura reduziu a velocidade para 60km. Vou, então, na direita, na velocidade permitida, porém à base de faróis altos no meu retrovisor, buzinas insistentes e, por certo, xingada de babaca. É, de fato, incrível, como as pessoas se transformam na direção.

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    1. É mesmo algo incrível e estranho, Inês, como as pessoas se transformam ao assumirem o volante de um automóvel. E veja que surreal: cumprir a legislação e dirigir com bom senso rende xingamentos e queixas. Estranhíssimo. Obrigado por sua visita e comentário! :)

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  4. Amigo, a tua frase: - "O brasileiro, “apaixonado por carro”, não admite “ficar para trás” ou levar desaforo para casa." - resume tudo.
    Dirigir virou disputa e quase um esporte dos mais violentos!

    Beijão!

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  5. Eu sempre lembro do desenho do Pateta.
    Quinta é dia de sofrer no trânsito de SP. :(
    Todo dia é dia de sofrer no trânsito de SP.
    Eu fico me perguntando se as pessoas têm noção da selvageria que praticam no trânsito. Será que a pé, cortariam outras pessoas, sairiam "fechando" para passar na frente e parar no sinal logo à frente? É só pensar que no supermercado, se alguém fizesse isso com um carrinho de compras, seria advertido pelo segurança ou sei lá, seria tomado como louco.
    Todo mundo diz que sou paciente no trânsito (menos minha mãe). :P
    Mas acho que já estou perdendo a minha paciência, viu? Falta é educação doméstica para as pessoas e um bom (um excelente) psicólogo.
    Beijo.

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    1. Falta muita educação doméstica para começar, Lidi. E li há pouco uma matéria onde um psicólogo diz algo interessante: "o trânsito nada mais é do que a representação da sociedade."

      http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/10/transito-e-reflexo-da-sociedade-diz-psicologo-sobre-acidentes-na-bahia.html

      Beijo e obrigado! :)

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  6. A verdade é que não há senso de coletividade... cada um por si e pronto!!! Há algo de muito errado nisso tudo, Jaimezinho!!!!

    bjks

    JoicySorciere => CLIQUE => Blog Umas e outras...

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    1. Tem mesmo, Joicy. Falta de coletividade é apenas um destes erros. Bjks!

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  7. O trânsito hoje em dia só tem animais(penso até que seja uma afronta aos bichos,mas é por aí...)E não satisfeitos em colocarem suas próprias vidas em risco,também colocam as dos outros,que geralmente,levam a pior.
    Lembro-me como se fosse hoje,estava voltando de Belo Horizonte com minha amiga,já estava apenas poucos minutos de casa,e eu bati em um carro,pois foi algo de segundos,nem sei de onde surgiu aquela caranga,só sei que tentou entrar na minha frente,e no que fui frear,nem deu tempo.O cara saiu igual uma besta feroz de dentro do carro e começou a gritar,bater no vidro,eu fiquei bege,rosa,verde..nem sei mais que cor rs. Minha amiga estava em estado de choque.Eu fiquei dentro do carro,por alguns minutos,pensando como agir.Resolvi sair,ele xingou muito,mas fiquei de cabeça fria,fui falando em monólogo,porque ele nem me escutava...queria sempre sobrepor a sua voz a minha.Primeiro chegou a guarda municipal,depois a polícia militar,sem nenhum preparo para lidar com tal situação,uns 'soldadinhos' penso que novatos,querendo aparecer,fazendo várias 'gracinhas'.Nesse meio tempo( umas duas horas,por aí..rs),meu pai chegou,nessa época ele prestava serviço para 'cúpula' da polícia Civil e deu aquela 'carteirada',e foi aí que me salvei,porque senão,nem sei o que poderia ter acontecido,sendo que eu era inocente na parada.E olha que na época eu tinha porte de arma,imagina se eu fosse uma louca,descontrolada,igual essa médica assassina?E por aí...teve várias outras situações de perigo,se eu contar aqui,vira uma nova Bíblia.rs
    Mas a coisa tá séria,tem muita toupeira no trânsito.Como sou cristã,só resta-me pedir a Deus que me conceda livramento profícuo e abundante,não só a mim,a todos nós!Amém!
    Ufa!terminei. rsrsrsrs

    Beijão,Jaime!Dani.

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    1. Nestas situações a melhor coisa é manter a cabeça fria, Dani, pois os ânimos ficam muito exaltados. Grande beijo e obrigado, Dani!

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  8. Jaime, meu amigo, tudo bem?
    O mesmo assunto de uma crônica que ainda não postei lá no blog, mas pretendo até ao final do ano, mas você vai bem mais longe, minha análise foi meramente pessoal, do que passo aqui no dia-a-dia.
    Penso que o errado em termos de trânsito se dá pelo 'mais', ou seja, o arriscar em velocidade, despeito aos sinais, regras de trânsito; mas também, coisa que poucos versam, pelo 'menos' - motoristas que dirigem extremamente devagar nas estradas (pois, sim, existe também limite mínimo de velocidade em rodovias e avenidas), o que provoca por tabela a ira de quem vem atrás, e as ultrapassagens perigosas, muitas vezes, por esse motivo. Penso que tudo seja uma questão de inadequação, para mais ou para menos. O motorista que dirige muito devagar na pista da esquerda, quando deveria estar na pista da direita. E os casos clássicos de quem vê nas ruas uma verdadeira pista de corrida. O desenho dos Hanna Barbera - a corrida maluca - reproduz com perfeição todos esses esteriótipos sobre rodas, desde o Dick Vigarista, a Penélope Charmosa, até o Capitão Caverna :) Aqui na cidade têm muitos capitães cavernas e seus carros que mais parecem saídos do período paleolítico, de tanta falta de manutenção, outro perigo...
    Perfeito!
    Beijos e ótimo fim de semana!

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    1. Minha querida Cissa, é sempre bom tê-la por aqui. Pois é, circular com o veículo em baixa velocidade na pista da esquerda é uma infração ao Código de Trânsito Brasileiro ( capítulo III, artigo 29). As leis mais básicas e o bom senso são desprezados - a representação do Dick Vigarista é interessante. :) Beijo e muito obrigado! :)

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  9. Novo aqui! muito bacana teu espaço. É jornalista? (ou estuda jornalismo?)
    perguntei mais pelo tipo de problematização do teu texto, que sendo bem escrito, tem uma estrutura muito limpa e coerente.
    parabéns

    Te aguardo lá
    diademegalomania.blogspot.com
    abraço

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    1. Muito obrigado, Luís, pela sua visita e comentário gentil. Não sou jornalista e nem estudo, mas eu adoraria seguir tal profissão. Quem sabe um dia? :)

      Um abraço!

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  10. Olá, Jaime! Sou novo no mundo dos blogues e soube do teu blogue através do da Fernanda Bender e vim te fazer uma visita. A questão do trânsito é bem complicada e creio que seja mundial esse problema. Eu atualmente resido no Japão e muita coisa mudou (para pior, infelizmente) nesses últimos 10 anos. Moro numa cidade grande e esperar o pedestre atravessar já não é virtude de muitos japoneses. Onde antes só existiam faixas de pedestre e os motoristas esperavam a gente atravessar, hoje já tem semáfaros. Andar de bicicleta está ficando cada vez mais perigoso por aqui, eu mesmo já fui atropelado quando andava de bicicleta o que me causou uma fratura no pulso e dedo da mão. O problema daqui além da falta de educação no trânsito, é também o caso de motoristas que se distraem no celular, checando e-mails enquanto dirigem e quando percebem já acertaram alguém. Não chega a ser igual ao Brasil, mas percebi que a coisa está piorando dos últimos anos para cá. É sem dúvida um problema mundial. Tenha um bom domingo!

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