Heróis da infância



Todo menino teve seus heróis além daqueles da TV e das Histórias em Quadrinhos. Aqueles heróis, diferentemente do Super Homem ou Spectreman, não possuíam super poderes e nem lutavam contra gigantes que queriam destruir o planeta. Eram pessoas simples, que encontrávamos nas ruas quase todos os dias: o policial, o bombeiro, o eletricista que escalava os postes e até o carteiro que enfrentava os terríveis cães de guarda no cumprimento do seu dever. Porém, eu e os meninos da rua tínhamos um herói em comum: um motorista de ônibus cujo apelido era “Ratinho”. 


O apelido era óbvio: macerrímo ao estilo “pele e osso”, ostentava uma cabeleira loira e lisa em uma grande cabeça que víamos a quilômetros de distância – exagero, claro; dentuço e com olhos pequenos - mas vivazes! -, o frágil e pequeno Ratinho se tornava um Hércules ao comandar um veículo imenso com tantas toneladas. E por se achar uma espécie de semideus do Olimpo e assim praticamente indestrutível, o nosso Ratinho pisava fundo no acelerador – para a alegria da garotada e reclamações dos adultos: 

- Ô, motorista, vai tirar a mãe da forca, é? Vai devagar! 
- Motorista, seu maluco, você não tá carregando gado, não! Alivia! 

A garotada adorava pegar o ônibus com o Ratinho porque ele fazia ultrapassagens arriscadas em alta velocidade, buzinava freneticamente para os carros pequenos saírem da frente e transformava as ruas e ladeiras em trilhos de montanha russa; desta forma não faltavam incentivos ao “Nelson Piquet do busão”: 


- Pisa fundo, Ratinho! Ainda tá devagar!
- Tá lerdo hoje, hein, Ratinho? Acelera! 


As reclamações dos adultos ao fiscal da empresa de ônibus eram constantes, mas nada acontecia ao Ratinho, pelo contrário: o fiscal reiterava que o motorista era um funcionário exemplar, cumpridor dos horários e nunca se envolveu em um acidente de trânsito. Quando soubemos que ele nunca bateu o ônibus, Ratinho passou a ser o ídolo incontestável entre a garotada. Andávamos de bicicleta querendo imitar o nosso herói – e com resultados doloridos principalmente nos joelhos e nos braços, é claro. Mas nenhuma queda de bicicleta nos desanimava do nosso grande objetivo no futuro: ser motorista de ônibus – não um motorista qualquer, mas igual ao Ratinho! 

Um dia, porém, aconteceu o que os adultos previam há muito tempo. No horário de sempre no retorno da escola, pegamos o ônibus com o nosso motorista idolatrado e nos preparávamos para mais uma curta viagem repleta de emoção em alta velocidade – e naquele tempo ainda havia algumas ruas sem pavimentação, para alegria da garotada: com o ídolo das pistas, a viagem parecia uma prova de Rally em alguns trechos. E foi exatamente em um destes trechos, com lama e sem cascalho, que Ratinho perdeu o controle do veículo e bateu com tudo na parede de uma casa – felizmente vazia naquele momento, pois o ônibus invadiu uma parte do quarto da residência. 

A garotada, que sempre ficava na parte de trás do ônibus – pois era mais emocionante -, foi arremessada para a frente e, com exceção de alguns arranhões e luxações, não houve maiores problemas; o mesmo não se podia dizer do pessoal que estava na frente do veículo e principalmente do Ratinho, que ainda teve muita sorte de sair apenas com cortes superficiais no rosto e alguns ossos quebrados. Foi só quando vimos o nosso ídolo com o rosto banhado em sangue e contorcendo de dor no chão é que percebemos o quanto tudo aquilo era perigoso e que nossos pais e demais adultos tinham razão: aquela correria desenfreada e principalmente a irresponsabilidade do Ratinho ainda causaria um acidente mais sério. 

Depois disso, nunca mais soubemos do Ratinho. Provavelmente foi transferido para outra linha ou até, quem sabe, foi tentar a sorte em um rally ou corridas automobilísticas. Quanto aos meninos, bem, ao menos o bairro ficou livre de um bando moleques pilotando suas bicicletas como malucos e no futuro provavelmente teria motoristas mais conscientes e logo todos já procuravam  novos heróis como referência. No meu caso, um goleiro uruguaio que chegou à Vila Belmiro chamado Rodolfo Rodríguez y Rodríguez, mas esta já é outra história.  

6 comentários:

  1. Relato tocante de parte de sua vida, achei muito legal!
    Principalmente pela lição que vocês, ainda crianças, tiraram desta passagem: "heróis", pessoas que admiramos e idolatramos também são sujeitas a falhas, e superheróis existem apenas no cinema.
    Abraços e bem vindo de volta!!!!

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  2. Olá, Jaime.
    Acho que não existe infância sem nenhum tipo de susto, ainda bem que ninguém se feriu gravemente.
    Sempre que conhecem pessoas de aspecto um pouco mais excêntrico, as crianças tratam logo de apelidar e pegar no pé.
    Lembro que meus heróis da tv de quando eu era bem pirralho eram o Homem de Seis Milhões de Dólares, o Sinbad dos filmes com os monstros em stop motion, o John Wayne (quando eu ainda achava que os índios eram maus) e o Jerry Lewis, que era uma espécie de herói trapalhão.
    Abraço, Jaime.

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  3. Esse Ratinho,hein!,figuraça.
    O bom de ser criança,é o olhar tudo magicamente,sem medo,sem censura.É a fase que a vida é mais VIDA.
    Lembro do meu tio,já falecido;era louco de pedra,e quem sempre era sua cúmplice?Euzinha,rs. Essa sensação de de ser SUPER,é algo tão inocente,tão pueril,eu via uma criança em seus olhos,foi meu herói lúdico..Penso ser esse motivo de eu ser uma criançona até hoje,não nas atitudes,mas tento sempre enxergar colorido,sempre ter um sorriso no rosto e não guardar mágoas."Meu herói preferido",é uma música do fofão,sempre que eu a escuto(sim,eu ainda escuto fofão),lembro-me dele.

    Esse texto me fez lembrar de momentos tão lindos..

    Beijão!Dani.

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  4. Ahh como a inocência é gostosa! Hoje criticamos os "Ratinhos" da vida e com razão. O trânsito está um caos!
    Mas aposto que era bom demais correr né?! Kkkk

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  5. Jaiminho, querido amigo!
    lindo teu texto, muito sensível!
    Pois pensei nisso mesmo, na questão de que quando crianças não temos essa noção toda do medo, que é importante na vida humana, como uma segurança para a própria vida. Tudo é emoção, e queremos isso. E te digo mais, acho que no decorrer da vida, ainda teremos outros tantos episódios em que essa nossa criança sem-medo adormecida renasce, onde nos expomos, talvez sem precisar, mas porque uma coisa chamada emoção nos fala mais alto. Aqui nesse caso, de fato, o Ratinho expunha a todos, mas existem outros episódios, herois, ou mesmo os nós-heroi que talvez grite com ânsia pela emoção, e nem sempre o risco é de fato, pode ser apenas um 'risquinho' necessário para nos legitimarmos, fazer nossas vidas serem protagonizadas por nós mesmo; ao invés dos Ratinhos.

    Em tempo, meu primeiro heroi foi o Speed Reacer, e eu pedia a meu pai para correr como ele, quando dirigia, se a mãe não estava junto, ele dava as corridinhas, por sorte, nada nos aconteceu.

    Depois veio as Panteras, minhas heroínas! A primeira vez em que um seriado de TV mostrava mulheres lutando de igual para igual com os homens, usando armas de fogo, dirigindo carrões e ainda tendo charme. Que mulher não queria ser uma delas? haha

    Beijos, adorei!

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  6. Que fantástico! Que lição "doce" podemos ter nesse herói. A catarse foi excelente!

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