O essencial é saber ver.



Após a leitura do excelente “Trilogia suja de Havana”, de Pedro Juan Gutiérrez, tomei um dos livros de Eduardo Galeano para reler. Em determinado momento da leitura, deparo com o seguinte trecho:

A democracia não é o que é, e sim o que parece ser. Estamos em plena cultura do enlatado. A cultura do enlatado despreza o conteúdo. Importa o que é dito, e não o que é feito”.

Mesmo sob o risco de parecer pretensioso, eu incluiria nestas palavras de Galeano o “ser visto”. Na sociedade imagética e
narcisista  - esta última estimulada em redes sociais como o Facebook - o bordão de uma antiga propaganda de refrigerante é certeiro: “Imagem é tudo”. Neste cenário podemos até substituir a famosa expressão de Descartes, “Penso, logo existo” para “sou visto, logo existo”.

Outro que apresenta um certo desencanto com essa “cultura do enlatado” é o cientista político italiano Giovanni Sartori: “Um sucessivo aspecto da nossa nova maneira de ser e de viver é uma artificialização cada vez maior invadindo totalmente a existência”. É bastante curioso reparar o quanto os termos “enlatado” e “artificial” são complementares e se ajustam perfeitamente dentro deste cenário da construção de imagens “para consumo público”( em referência a Bauman): espontaneidade e autonomia não parecem ser características apreciáveis.

Um exemplo muito interessante desta construção de imagens públicas cada vez mais artificiais é a campanha eleitoral dos candidatos aos cargos políticos. Estas pessoas estão sempre seguras, simpáticas e acessíveis. A imagem de um candidato comprometido com os anseios da população é cuidadosamente construída por competentes equipes de marketing político que investem no que Sartori chama de “
emotivização da política, isto é, uma política relacionada ou reduzida a pencas de emoções”. Com estes elementos temos a primazia da imagem construída - onde até mesmo a “espontaneidade” é rigorosamente planejada -  enquanto as “propostas dos candidatos” e as discussões que merecem maior seriedade são colocadas em segundo plano ou até minimizadas.    

Partido de uma obviedade, imagens estão aí para serem vistas. Contudo, o modo como as enxergamos é o diferencial diante de tantas exposições capturadas por nossos olhos. O escritor português José Saramago, em seu “Ensaio sobre a cegueira”, nos convida à reflexão: “penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”. Mas ainda prefiro o conhecido conto de
Andersen, “a roupa nova do imperador”, onde o vaidoso monarca desfila nu pelas ruas e todos estão convencidos de que se trata da roupa mais deslumbrante do mundo - até que um garoto, no meio da multidão, grita “o rei está nu!” e assim todos passam a enxergar.

Sejamos como o garoto da história de Andersen que soube enxergar e, com espontaneidade, convidou os demais a desnudar o rei, derrubando assim um pacto de "não-ver" - afinal, como escreveu Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, “o essencial é saber ver”.

Referências:
GALEANO, Eduardo.
Ser como eles. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1994. 2a edição.
SARTORI, Giovanni.
Homo videns: televisão e pós-pensamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

13 comentários:

  1. Jaiminho, querido amigo!

    Maravilhoso o teu texto!
    Teria muita coisa a te dizer, mas poderia resumir tudo naquela máxima: 'quem não é visto, não é lembrado' - se a ideia é que se lembrem do sujeito, é inevitável sua exposição.
    No caso dos candidatos a cargo político isso é notório, não somente a exposição, mas a exposição daquilo que é interessante que se mostre. Tivemos até um sujeito que disse tudo, tudo mesmo (pensando que estava fora do ar..., mas...), lembra? "O que é bonito a gente mostra, o que é ruim a gente esconde".

    E aí, entramos definitivamente na questão da imagem, que é construída por essa pré-censura que a pessoa faz de si mesma; ou seja, ao invés de se propor evoluir nos aspectos que deveria, não o faz e esconde os supostos defeitos. No que suponho, existe a auto-crítica, mas não o propósito de auto-mudança, porque não se deseja isso: por várias razões, apenas se mostra o bonitinho.

    E assim o cara bonitinho é eleito, até dar em impeachmant, que foi a situação clássica do país. Ou na esfera pessoal, os facebooks rosa: festas, felicidade, casais abraçadinhos e... Ou seja, existe a opção pela exibição, mas apenas do que se acha 'vendável', e aí, o vocabulário: 'enlatado, artificial, para consumo público'; pode ser ampliado com mais palavras - produção em série (pois isso se dissemina como padrão de comportamento aceito e prêt a porter - pronto ao uso).

    A verdade que 'o essencial é saber ver', mas, complementando, é difícil saber ver. Pois quando temos sede no deserto, uma miragem nos é conveniente.
    E assim trabalham as pessoas públicas, políticos e afins, e também qualquer pessoa que tenha perfil público (afinal se é produção em série, já foi disseminada, como falei), em parecer-se um oásis a quem tem sede.

    Concluindo, nossa imagem sempre acaba satisfazendo aparentemente os desejos de algumas pessoas ou determinados grupos, enfim. Porque inseridos na sociedade, também 'vendemos nosso produto' aos 'clientes', mesmo que nem percebamos, e assim sendo, e ainda complementando, no momento em que também nos tornamos um produto, porque acabamos inevitavelmente o sendo, aceitamos com mais facilidade os outros-produtos; ainda mais difícil ser o menino que grita o 'rei está nu', se talvez estejamos pensando que vestimos seda; e não chita.
    Ufa! Escrevi, e tinha mais...Jaiminho!

    Parabéns!

    Beijos de até, bichinho!

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  2. Jaime, dia desses eu fui à livraria Saraiva e lembrei que vc havia indicado esse livro. MAs, quem disse que eu conseguia lembrar o nome do livro(e do autor)??? Agora anotei direitinho, para procurá-lo em minha próxima visitinha à livraria, que será em breve. Todo início de mês(qdo o "salááááárioo ó" entra na conta bancária) eu me dou de presente, alguns livros.

    Qdo li “A democracia não é o que é, e sim o que parece ser", lembrei imediatamente uma tirinha da Mafaldinha, aquela danada, onde ela lê no dicionário o significado da palavra democracia e fica rindo por hooooooooras e horas(mas, só pode ser piada mesmo! rsrsrs… digo, piada nós acharmos que essa tal existe do jeitinho que é descrito.kkkkk).

    PArtindo para o tema de seu texto, concordo plenamente. Estamos vivendo uma época de aparências. Aliás, penso que sempre foi assim, mas, com a tal globalização a coisa alastrou-se… afinal, a exposição está muito mais escancarada!

    Sabe o que é mais interessante? A sociedade está repleta do tal "mais do mesmo", contudo, um mais do mesmo de "altíííííííííssima qualidade"(eles que dizem). Viu como só tem "gente fina" por aí!?!?!? O pior é que muita gente caminha tal qual os moradores que vivem no reino do tal "imperador nu". Ou seja, sabe que é farsa, mas, como todos dizem o contrário, acabam indo 'na onda'. Assim como vc, tbem desejo que sejamos como o menino corajoso, da história de Andersen. Que possamos ver o que de fato deeeeve ser visto, sem deixar que as máscaras dominem nosso campo de visão.

    Adorei seu texto!!!!!!! Ótima reflexão…

    bjks http://umaseoutrasjoicy.blogspot.com.br/

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  3. "...onde até mesmo a “espontaneidade” é rigorosamente planejada".
    Você disse tudo nessa frase. Como driblar a falsidade quando ela vem nesse nível?! Excelente texto o teu!

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  4. Olá, Jaime.
    Seu texto mostra um dos grandes paradoxos da internet: da mesma forma como é fácil nela procurarmos a verdade, também é fácil disseminar mentiras.
    Acho que a grande questão é sabermos diferenciar o ver do enxergar, que são duas coisas absolutamente diferentes.
    E aqui no Brasil a cultura de valorizar a aparência física é bem comum e disseminada entre o povo, já que basta alguém usar terno e gravata para poder se auto-intitular "doutor".
    Abraço e bom fim de semana pra ti, Jaime.

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  5. Olá Jaime, agradecendo sua visita e pelo belo comentário que enriqueceu o texto... Excelente. Obrigada.
    Parabéns pelo texto, realmente a verdade é uma palavra extinta do vocabulário destes políticos, penso que de todos, na verdade amigo estou totalmente desmotivada a votar, aqui em minha cidade é uma catástrofe de políticos, não vejo um que vale a pena confiar, nem unzinho. Li os planos de governos dos três candidatos, tudo muito lindo, um papel de qualidade, muitas fotos e sorrisos largos dizendo: “vem cá que quero te enganar e roubar mais quatro anos” Pior que o povo vai, se vende com promessas mentirosas e faraônicas.
    Os trajes são sempre impecáveis.
    Cada povo tem o governo que merece, não é mesmo?
    Abraços e um fim de semana maravilhoso.

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  6. Olá, querido Jaime! Pois...
    A cultura do enlatado [eu não sei o porquê, mas me vem a figura de uma lata de feijão americana], o pronto, o pré-fabricado, é empurrada 'goela' abaixo da nova geração, carente de 'luta pelo o quê?'. Por isso presenciamos esse festival de porcaria, desde de candidatos descerebrados na política até música descartável mode on. Chega a dar um enjoo, uma vontade de dizer - chega! Com relação as mídias, e aquela frase que o Andy Warhol popularizou - todo mundo um dia vai ter 15 minutos de fama. Ele só não sabia que o facebook existiria e muito menos que espalharia a discórdia, brigas de escola, as celebridades fakes e mais um montão de coisa ruim. Enlatado, veja só, também me lembra a defunta Disney, antes soberba, agora fabricante em massa de cantores medíocres e atores de quinta [Diney + Pixar ainda é bem bacana]. Eu chego a conclusão que tudo está fácil demais e aí o cérebro não se exercita. Tem muita gente boa HOJE na música, nos livros, como antes. A diferença - mídia! Não têm espaço. A geração de agora só pensa em sexo, diversão e nada de rock. Triste! Eu não vejo a vida melhor no futuro...

    T.S. Frank

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  7. É isso aí, Jaime. Tudo depende de como vemos as coisas. Gostei do termo 'sociedade imagética e narcisista'. É engraçado pensar assim, como que a sociedade se tornou tão imagética (imagem é tudo) e narcisista (a todos os integrantes da sociedade). São poucos os que enxergam a verdade nas fotos, imagens e palavras.
    Sobre o rei nu, lembrei-me da foto da mulher pêra. Alguns chamam de sensual, outros de absurdo. Cada um enxerga o que vê.
    Grande abraço

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  8. Oi Jaiminho,

    Tudo bem? Já partiu? Espero que ainda não para ler o meu comentário.

    Penso que essa questão vai além do que se percebe, pois há excessos em todas as formas, principalmente no exagero de cores, tamanhos e mensagens dos candidatos. São ferramentas de comunicação arcaicas e quando há currais eleitorais, o desrespeito não é só visual, mas humano.

    Essa semana li um artigo do jornalista Antonio Giron que nos desafiava a chutar os cavaletes, derrubar e pintar de chifres e dentes sangrentos de vampiro o rosto dos candidatos. Era a tese de que o lixo da imagem é a arte final da democracia. Mas só que isso é como praga gafanhotos daquelas que quanto mais combatemos, mas chega na janela.

    E para completar percebo os excessos do photoshop nessa cultura do enlatado. Aqui em Alagoas, com sempre, a política é mais do que o marketing político, pois para constituir a imagem é regra distingui-la de sua personalidade original. E, assim, a escolha não é entre propostas ou características, mas apenas de imagens. Pergunta para ex do ex presidente o que ela acha dele? Ah, nem precisa, basta a imagem. A imagem é mais que um descolamento, ou seja, equivale a um “script” que o candidato que transmitir para o público.

    Mas, basta lembrar que em terra de cego quem tem um olho é rei. Então Saramago só conseguiria se revelar no Ensaio a Lucidez, pois nesse livro o que ele questiona é o sistema, a democracia. Aliás, ele convida para o voto em branco como consequências de uma revolta popular.

    Beijos em ti e na Barbie.

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  9. Brilhantes referências! Luciana complementou o que comentaria sobre o Ensaio sobre a Lucidez, que comentei em algumas saudáveis conversas que tive por esses dias. Jaime, são impressionantes as coincidências e conexões que fazemos ao lermos os grandes - na maioria das vezes não lidos. Leio J'acuse ultimamente, mas me impeli a reler O Processo e a rever Cidadão Kane. As conjunturas nos remete a eles.

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  10. Olá Jaime, esta é uma questão sempre pertinente, penso que na maioria das vezes vemos tão somente aquilo que nos convém, no caso das eleições e das propagandas dos candidatos, nós como sociedade preferimos acatar a visão amparada em aparências do que a que é de fato real, pois a aparência sustenta o jogo eleitoral e consequentemente a nossa inércia. Se olhássemos com os olhos verdadeiramente abertos perceberíamos a verdade e esta nos compeliria a tomar uma atitude real diante de tanta falsidade, todavia, tomar uma alguma atitude é o que menos queremos...

    http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/09/girls-serie.html

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  11. Já escreveu Andersen um dia,o patinho feio.Quem quer ser esse patinho?Ninguém!
    O "essencial",não é o essencial.Vivemos em uma utopia constante e severa;supérfluo,tudo é superfluo nesse mundo onde o "rei" se apresenta com as melhores vestes,a fim de esconder as imperfeições da alma e,nós como cegos e cegas que somos,nos encantamos com a roupa do "rei",queremos a roupa do "rei",queremos ser "rei" também.

    Beijão,Jaime!Dani

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  12. Amigo Jaime,
    Que texto lúcido e inteligente!
    Realmente nos urge aprender a ver e não somente a olhar, sobretudo na questão política.
    Costumo dizer que temos deveras democracia, contudo, esse "demo" não vem do grego "dêmos", que quer dizer povo, mas do latim "daemon,onis", que significa demônio, diabo, demo no poder.
    A massa não está preocupada com a essência, mas somente com aparência e isso leva-se séculos para quebrar esse paradigma.
    Ainda fazem suas escolhas conforme necessidades individuais.
    Quando um político melhora sua imagem para nos engambelar, piora a nossa, de nossa cidade, estado e até do país.
    Gostei muito deste candidato "Marmota". Só essa imagem já nos diz tudo a respeito da política.

    Abraços do amigo.

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  13. Muito obrigado a todos pelos ricos comentários! :)

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