Morreu a velhinha


"The lacemaker”, de Johannes Vermeer.Daqui.

Morreu 3 dias depois de chegar aos 100 anos.
Parece que estava só esperando o centenário.
Da vida não teve muitos segredos:
Nasceu, cresceu, casou, teve filhos,
Aprendeu a ler e escrever o básico.
Ela nunca ouviu falar de Alberto Caieiro,
Mas concordaria com o heterônimo:
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.”

Ela não saía muito de casa:
Cresceu no mato, casou no mato,
Só depois virou urbana.
Na cidade, então pequena,
Era de casa para a venda;
Da venda para casa;
E aos domingos, missa.
Não viu muita coisa do mundo.
Não viu Getúlio Vargas,
Não viu a segunda guerra,
Já ouviu falar de Hitler,
Não conheceu Stálin, Mussolini,
Mas da bomba atômica ouviu falar
E acreditou em Deus Pai para a todos salvar. 
Não viu os hippies e nem o Vietnã;
Nunca soube quem eram os beats e os Beatles,
Rolling Stones e Jovem Guarda,
Mas gostava de algumas canções do Roberto Carlos;
Ouviu falar que o homem pisou na lua,
Mas nunca soube de Kennedy e Luther King.
Passou pela ditadura que nem se deu conta;
Viu que Tancredo Neves morreu,
E depois disso não sabe o que aconteceu;
Viu que um presidente jovem saiu,
E depois disso não sabe o que aconteceu,
Embora neste período tenha ficado mais pobre.
Ouviu falar que o mundo acabaria no ano 2000
E não viu o fim do mundo;
Viu uns edifícios arderem em chamas nos EUA,
Mas nunca soube direito o que aconteceu;
E nos últimos tempos assistia TV
Sem nada entender.

Mas ela viu muitas outras coisas.
Viu os filhos crescerem,
Os netos aparecerem,
A família prosperar.
Viu as plantas do jardim,
Ouviu o canto dos pássaros,
Agradeceu pela chuva,
Plantou na terra fértil,
Colheu o fruto de seu trabalho
E como viu que era bom, continuou.
Viu nascimentos e mortes,
Viu lamentos e felicidades,
Viu os animais de estimação,
Grandes alegrias.
Viu exames de saúde perfeita,
Poucas vezes no hospital esteve;
Viu milagres e falsidades,
Viu, sorriu, chorou, cozinhou, amou.
Sim, viu amores, sentiu amores.
E quase sem sair de casa,
Viu muita coisa a velhinha centenária.

E eu vi,
Ainda tão jovem
E sem precisar sair de casa:
A praça da Paz Celestial
A igreja da Candelária
De massacres e chacinas nada divinos;
O fim da União Soviética,
A queda do muro de Berlim,
A derrocada do comunismo,
A explosão do consumismo. 
A queda do mauricinho Fernando Collor;
A ascensão do intelectual Fernando Henrique;
A ascensão do operário Luís Inácio Lula;
Os holofotes na estagiária de Bill Clinton,
A liberdade de Nelson Mandela,
A morte de um Papa,
A escolha de um novo Papa,
A decodificação do genoma humano.
A seleção brasileira vencer Copas do Mundo;
O mapa-múndi diferente;
Golfo, Kosovo, Bósnia-Herzegovina, Chechênia, 
Saddam Hussein, Milosevic,George Bush, Bin Laden,
E o ataque às Torres Gêmeas.
A revolução da internet;
Tsunamis e terremotos devastadores;
Um negro no poder nos EUA;
A primeira mulher presidente do Brasil;
Um robô em Marte.

E
sei que ainda vou ver muita coisa.
Muita coisa boa.
Muita coisa ruim.
Mas vi muito pouco.
Tomara que eu veja tanto
Quanto a simpática velhinha centenária
Viu durante sua vida.
E que possa partir igualmente de forma serena,
Com a tranquilidade de saber ter visto
O que era mais importante.  
O essencial é saber ver”.*

*“O guardador de rebanhos”, de Alberto Caieiro

30 comentários:

  1. Parabéns, Jaime! Estou encantada com seu texto. Muito bonito e sensível, como de costume, nem sei direito o que dizer, mas já recomendei a muita gente!


    Bjs.

    ResponderExcluir
  2. Jaiminho, bichinho!
    Retorno com calma, à noite ou madrugadão, tá bom?
    Quero muito te agradecer pelos comentários e por sempre valorizar meu trabalho: priceless!: (olha eu falando 'ingreis').
    Tenho muito orgulho de ti, amigo!
    Beijos e beijinhos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado por tudo, Cissinha! :) Não tem preço a sua amizade! Bjs!

      Excluir
  3. Oi Jaimimho.

    Em primeiro lugar, te perguntar como anda a vida?

    Em segundo lugar, te agradecer pelos comentários lá no blog, pois me permitisse outras visões, além da hipermetropia aliada a minha cegueira banca de Saramago.

    Em terceiro, te falar que quando analiso esse tipo de pintura, penso na dificuldade de Vermeer para representar um atividade. Penso que exigia concentração em excesso em ambos os lados. Pintura mais que precisa. E, assim, contemplá-la no Louvre é um exercício a lucidez.

    Quanto a velhinha centenária, penso que não foi preciso ela ouvir falar de Caeiro, pois a vida foi cheia da vida, mesmo com tremenda simplicidade e realidade. Acho que nem depressão ela teve, pois não desejou o indisponível e só guardar o rebanho já valeu o dia. Não buscou o incerto, não se apaixonou pela ilusão. Foi claro a percepção da mensagem de que "pensar é estar doente dos olhos".

    Não entendo muito do tempo que não vivi, mas concordo com uma frase de um político em tempos de crise em Portugal que diz: "Há vida para além do deficit"…mas hoje só temos deficit!

    Precisamos atender necessidades fisiológicas, mas a cada passo na pirâmide, crescemos as necessidades. Senti isso ontem quando questionei que não tinha na semana, apreciado outras leituras, além dos blogs. Um tanto de maluquice, mas ainda vou desejar muitas coisas, outras que posso ver e algumas que serão indefinidas. Não ouvirei passar o vento, pois estarei em profundo raciocínio pelas inúmeras vontades. Assim, estarei no final mais morta que a velhinha centenária.

    Excelente a reflexão!

    Boa semana lindinho!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Luluzinha! Tá tudo bem por aqui. E o seu blog sempre traz à tona ótimas reflexões. E gosto do trabalho de Vermeer exatamente por retratar o cotidiano que tantas vezes deixamos passar na correria destes tempos - muita informação, muitos recursos, muitas necessidades, mas precisamos de tantos "muitos"?

      Bjs e obrigado, Luluzinha!

      Excluir
  4. Boa tarde, Jaime.
    Belíssimo poema, sem dúvida.
    Acho que não importa o quanto vemos do mundo e o que nele ocorre, se não vivermos nossa vida nesse meio tempo.
    Pouco importa a História do mundo se não criarmos a nossa própria (ou como diria o Rei (que não é o Elvis nem o Pelé), se chorei ou se sofri, o importante é que emoções eu vivi).
    Seu B.L.O.G. (Bureau Logístico Ordenadamente Guarnecido) também é excelente, e sempre nos trará excelentes textos e reflexões necessárias em nosso cotidiano.
    Abraço, Jaime.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Jacques. E bela citação do Rei, entende? ( agora sim, o Pelé)

      Abraço!

      Excluir
  5. Jaiminho,
    voltei.

    Creio que nunca tinha lido um poema teu. Muito bom!
    Interessante o paralelo entre a velhinha e o eu-poeta, porque todos somos um pouco a velhinha e o poeta.

    O que prova que nem sempre o 'essencial é invisível aos olhos', (Saint Exupiere), mesmo aos nossos míopes, o 'ver' acontecer é essencial, e aqui não falo de conhecimento ou informação, mas de sentimento em forma de vida, que é a própria vida.

    Quero ler mais desta tua faceta!
    Beijos e ótima semana!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não... tenho quase certeza que já li um poema teu. Será que estou enganada?
      Mais beijos!

      Excluir
    2. Eu nunca publiquei um poema por aqui, Cissinha. Não é a minha "veia" rs. Mas obrigado! Estas palavras surgiram em um momento de inspiração raro. Quem sabe quando irá acontecer novamente?

      Bjs!

      Excluir
  6. Olá Jaime Guimarães , boa tarde!

    Belíssimo poema eis o que eu encontro por aqui, e sendo ainda o seu primeiro ensaio nesse campo, estou encantada com a qualidade do mesmo.
    Gosto muito de poemas que contam histórias de vida, e ao lê-lo, me veio à lembrança a grande poetisa Cora Coralina, de quem sou leitora entusiasmada.

    Alguém que na vida viu os filhos crescerem, netos aparecerem e a família prosperar; que viu as plantas do jardim, agradeceu pelas chuvas, e plantou na terra, e depois colheu o fruto de seu trabalho, não precisa mais ver coisa alguma nessa vida. O necessário pra recordar quando tiver 100 anos, já tem de sobra e com muita qualidade no olhar.

    Parabéns Prof. Te admiro, porque é do Bem, do Belo e do Bom!

    Beijinhos da LU...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Lu! É, eu tive essa ideia...na verdade a ideia central é justamente a "história da vida" - que vemos em tantos rostos e que têm histórias para contar. E viram muitas coisas! :)

      Bjs!

      Excluir
  7. Eu vivi alguns dos acontecimentos que você (seu eu lírico) disse que viu e fiquei me perguntando enquanto lia se eu de fato sabia mesmo que havia por trás deles, ou se aquilo que eu recordava era apenas algo tão superficial quanto a memória da velhinha sobre poucos eventos dispersos da história mundial, porém diferente dela, eu não sei se um dia, seu eu chegar á uma idade avançada, poderei olhar para trás e dizer que de fato vi a vida. Às vezes tenho a impressão de que o que vejo já não é mais a vida, mas tão somente o reflexo da visão de alguém que a viu por mim... Post genial meu caro!

    http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2012/09/habemus-papam.html

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É essa sensação mesmo, Bruno, que às vezes tenho também. O importante é "cuidarmos de nosso jardim" - para que lá na frente possamos colher e apreciar os frutos de nossa obra. Obrigado! :)

      Excluir
  8. Olá Jaime,
    Gostei muito do poema, e creio que é o primeiro que leio de sua autoria, não é mesmo? Gostei bastante! Ela de fato vivenciou a vida de uma grande parcela da sociedade, pois mesmo sendo contemporânea de todos esses ícones da história citados, não os conheceu, talvez seus reflexos. Tomando conta apenas da vida dos seus.

    Infelizmente para ela, não pode conhecer os Stones, tadinha, rsrsrsrsrrsrsrrs....

    Abraços, Flávio.
    --> Blog Telinha Critica <--

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Flávio, é o primeiro poema que publico e sei lá quando publicarei outro...É, pena que ela não conheceu os Stones, né? rsrs

      Abs e obrigado! :)

      Excluir
  9. Oi Jaime
    Adorei o poema, sempre adoro quando venho aqui, se não venho mais é por falta de tempo mesmo, mas te acho ultra inteligente e culto também, até me emocionou.
    Bjão. Fique com Deus!

    ResponderExcluir
  10. Fala Jaime,

    É interessante essa lembrança de alguns dos eventos mais importantes do século XX, muitos dos quais a simpática velhinha centenária nem ouviu falar, porque estava mais preocupada (e também porque não tenha meios) em ver as coisas essenciais para ela, coisas simples e mais imediatas da vida e do dia a dia.

    Uma das coisas mais angustiantes para alguém como eu, que não acredita em vida além desta terrena, é isso: passamos a vida acumulando um cabedal de saberes e técnicas, anos e anos de aprendizado, para um belo dia, com a nossa morte, tudo aquilo se acabar.

    Pelo menos, quem é professor pode compensar um pouco essa frustração, porque passa a vida tramsmitindo um pouco daquilo que aprendeu a outras pessoas, de modo que nem tudo morre quando ele morre, sempre fica um legado seu para a posteridade.

    Um grande abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grande Almir! E o que acho interessante, também, é que nós dentro desta "sociedade da informação" ( apenas um dos muitos termos utilizados para definir a nossa época) acumulamos tantos dados e números sobre eventos em tão pouco tempo que a pergunta seria "o que é importante para mim?". Não podemos reter tantas coisas - e há uma tentativa, afinal a "vida online" está aí - então penso que é melhor cuidar do que é essencial.

      Mas como somos professores é necessário manter as "antenas ligadas" e procurar pelo equilíbrio - para podermos orientar bem os nossos alunos.

      Um abraço!

      Excluir
  11. Muitos passam pela vida sem viver realmente;cegam os olhos da alma.
    A velhinha viveu a supremacia da vida,que´são as coisas mais simples,mais despretensiosas,no entanto,as mais valiosas.Sua vida foi linda,singela,foi VIDA em toda sua plenitude física e espiritual.
    Muitos existem,outros,vivem;as nossas riquezas estão ao nosso redor.Quem tiver olhos,que as vejam...e pelo VISTO,você também está VENDO,né,Jaime?

    Lindo,lindo,Jaime!Sensibilidade LINDA ao escrever esse poema.Parabéns,sempre!!
    Beijão,Dani.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado, Dani. Sim, estou vendo - embora tenha enxergado um pouco tardiamente, mas nada que eu não consiga recuperar. :)

      Bjs!

      Excluir
  12. Amigo Jaime,
    A história da Velhinha é uma alegoria do que ocorre com a maioria das pessoas (exceto pelo centenário): completar seu ciclo de vida, que é nascer, crescer, reproduzir e morrer, mas tudo instintivamente. Mesmo tendo vivido cem anos, não teve cognição da complexidade da vida e do universo. Viveu em seu módico mundo e modesta vida, porém suficiente para ser feliz, construir sua realidade. Foi heroína na questão da sobrevivência, onde muitos tropeçam na primeira pedra, ficando no meio do caminho. Tenho certeza de que não foram cem anos de solidão: teve muitas felicidades e alegrias na sua simplicidade, todavia, o suficiente para valorizar a vida.

    Agora o "eu lírico" é um testemunha mais atento da vida e da história, pois além de dispor de todo aparato informativo, tem uma percepção mais sensível, que perscruta além do dogma e do paradigma e ainda não se pode olvidar que o "eu poeta" é imortal (nem que seja enquanto vive).

    Amigo, estou maravilhado com seu genial poema. Fiquei imaginando ele feito em forma de cordel, redondilha maior...

    Parabéns pelo magnífico alumbramento!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grato, Bento! E não é que pensei em um cordel ou balada? Mas isso é para poetas de verdade, eu "joguei" estes versos em um raro momento de inspiração e deu no que deu rs. Obrigado por sua análise, gostei bastante!

      Excluir
  13. Ver, sentir, viver todos entramos nessa vida cheios de planos, sonhos e metas, e queremos sair dela com lembranças, nada mais que isso, nada menos que isso, a velhinha se recorda de muito, sentiu mais ainda e saiu daqui com a missão cumprida, a missão de ter simples e perfeitamente "apenas" vivido.

    Essas palavras simplesmente saíram após eu ter lido teu post.
    Abç

    ResponderExcluir
  14. Não entrava aqui, há um tempo... Esqueci como é bom! Como sou sua fã!!!
    Muito lindo, Jaime! Parabéns!
    Beijinhos!

    ResponderExcluir
  15. Poeta Satoru, tinha uma charge de mafiosos em que um gângster surdo entende "Tá na hora de apagar a velhinha". =D

    ResponderExcluir

Agradeço sua visita e o seu comentário! É sempre bom receber o retorno dos leitores.

Todas as opiniões são livres, porém não serão aceitos comentários anônimos e tampouco comentários ofensivos, discriminatórios de quaisquer natureza que não prezam pelos princípios da boa convivência e desrespeitam Direitos Humanos - o autor do blog reserva a si o direito de excluir comentários com tais temas e não se responsabiliza por interpretações deturpadas dos textos e ilustrações.

Volte sempre! =)

Tecnologia do Blogger.