Em busca do equilíbrio


“La caída de Ícaro”, de Jacob Gowy. Museo Nacional del Prado.

A mitologia grega nos apresenta a trágica história de Dédalo e seu filho Ícaro, aprisionados em Creta pelo Rei Minos, que ordenou ao hábil artesão Dédalo a construção de um labirinto para encerrar o Minotauro. O labirinto era tão intricado que Teseu, executor do Minotauro, só conseguiu escapar do tortuoso edifício graças à princesa Ariadne que lhe deu um longo fio para marcar o caminho de volta. 


Voltemos a Dédalo, hábil inventor e construtor. Aprisionado sob severa vigilância de Minos, teve uma ideia: recolheu as penas dos pássaros, fixou-as na estrutura de madeira com cera de abelhas e construiu asas para ele e seu filho, Ícaro. Com a terra e o mar vigiados, a saída, claro, seria pelo alto. O engenho funcionou e Dédalo, prudente, aconselhou a seu filho que não voasse tão baixo próximo às ondas do mar e nem tão alto próximo ao sol. Entusiasmado por voar como os pássaros e inebriado com a sensação de liberdade, o jovem desprezou o conselho do pai e voou cada vez mais alto até que a cera de suas asas derreteu e, sem as penas das asas, a queda de Ícaro foi inevitável e o impetuoso rapaz desapareceu no mar – a região conhecida como Icária

Dédalo aconselhou a seu filho, Ícaro, mas o conselho deste mito do qual a história atravessou séculos e inspirou artistas como Bruegel e Chagall continua sendo válido para todos – mesmo hoje no chamado “pós-moderno” século XXI. Quando o construtor do Labirinto de Minos diz “nem tão baixo e nem tão alto” ele está fazendo referência a um termo que é bastante utilizado atualmente e também muito procurado: o equilíbrio. 

Em tempos de estímulo a um consumismo voraz e de ambições pouco modestas, não são poucas as pessoas que procuram voos cada vez mais elevados em busca da ascensão social, profissional e outros objetivos. De repente o céu não é mais o limite, e sim as estrelas; por outro lado encontramos pessoas que abandonaram ambições e quaisquer  tentativas de algum desenvolvimento, sobretudo quanto ao aspecto emocional, relacionado com o bem estar – há mesmo quem se torne praticamente um ascético quase ao estilo de Santo Antão


A busca pelo chamado equilíbrio não é tão fácil como parecem demonstrar os manuais de auto-ajuda e palestrantes motivacionais. Os gregos estoicos e os budistas já se referiam ao desapego às coisas e às situações como forma de aliviar o sofrimento – afinal tudo é efêmero e ninguém pode controlar o que a deusa Fortuna ( o destino) nos reserva. Esse desapego não significa que as pessoas tenham que renunciar a tudo, e sim que não se apeguem ao que é passageiro como se fosse eterno, definitivo; a resignação, porém, não é interessante, pois deste modo Dédalo não escaparia da prisão de Minos.  


Quando encontramos a ambição e o apego a uma situação – ao poder, por exemplo – estamos diante  de um modelo que certamente faria de tudo para a manutenção e ampliação do que já possui. Um conselho como o de Dédalo seria inútil para alguém que não enxerga para os lados e tampouco para baixo – há momentos em que recuar e redefinir metas ou estratégias é importante, mas existem olhos que miram apenas o alto, desprezando o bom senso e ignorando as limitações. Não se trata, obviamente, de condenar aqueles que  tenham seus objetivos, ambições pessoais e profissionais, afinal ter metas (ou perspectivas) é saudável; porém, a ambição obsessiva destrói relações, reduz possibilidades, não tolera fracassos – a vida não é constituída apenas por vitórias e sucesso - e despreza a ética.  

O voo de Ícaro também representa a ambição por querer sempre mais quando já se tem muita coisa – e a liberdade não é pouca coisa: livre do cárcere e livre para voar, como relatado pela mitologia. “Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar” - talvez este velho ditado remetendo ao equilíbrio tenha origem nas palavras de Dédalo ao seu filho. Ao procurar voos mais elevados é bom estar seguro de que realmente possa voar tão alto, sob pena de despencar das alturas das ambições desenfreadas e desaparecer no mar onde jazem aqueles que não conseguiram recuperar suas asas.   

22 comentários:

  1. Boa tarde, Jaime.
    Eu passei a me interessar por mitologia grega quando vi o hoje clássico (e trash no bom sentido) filme Fúria de Titãs, onde fiquei admirado pela quantidade de criaturas monstruosas e fantásticas que compunham esse tema (só um pouco mais tarde é que fui perceber os simbolismos e alegorias contidas em cada um deles).
    Sobre equilíbrio, uma outra história também é bem interessante, a de Faetonte, filho de Apolo que, após descobrir que era filho deste, resolveu que podia guiar a biga solar de seu pai e acabou despencando no oceano, tal qual Ícaro (veio daí a expressão medio tutissumis ibis, ou seja, o caminho mais correto é pelo meio).
    Há um ditado popular que diz que quem tudo quer, tudo perde, na vida temos de ser comedidos, tanto na hora de consumir apenas o necessário e na hora de nos relacionarmos com as outras pessoas, já que explosões emocionais gratuitas de nada adiantam.
    Abraço, Jaime.

    ResponderExcluir
  2. Nossa que lição ganhei ao vir aqui hj!!!!!
    E que delícia é ler mitologia, sou apaixonada.
    Obrigada por esse textor beijo enorme e excelente final de semana pra vc!!!!!

    ResponderExcluir
  3. Olá Jaime,
    Tecer uma analogia entre a clássica história de Ícaro e a questão da busca por um ponto de equilíbrio foi sem dúvida uma sacada genial.

    A ambição desmedida de fato caracteriza a falta de equilíbrio e bom senso na vida de uma pessoa, no entanto achar esse ponto não é tarefa fácil, mas temos ao menos que tentar.

    Abraços, Flávio.
    --> Blog Telinha Crítica <--

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A história de Dédalo ( e Ícaro) é uma das mais trágicas da mitologia, Flávio. Mas considero esta emblemática para falar sobre equilíbrio. Abs!

      Excluir
  4. Jaiminho, meu Bichinho, tudo bem?
    Belo texto!

    Analogias perfeitas.

    Penso que atingir o equilíbrio é ainda mais complexo do que a expressão: "nem tanto ao céu, nem tanto ao mar".
    Pois existe uma coisa chamada 'relatividade' que pode mudar as coisas, ou seja, em alguns momentos da vida o 'equilíbrio' mais correto é nos permitirmos voar um pouco mais alto, sim, ambicionar, tentar, desafiar,... errar? Sim! Mas a ponto de sentir as asas começarem a derreter, assim perceberemos o recuo inevitável, e o momento de começar a descer.
    Entendi que você falou em excessos quanto a ambição, ética. Mas o que falo aqui é que existem momentos e momentos, não de sermos éticos ou não, porque isso, somos ou não somos, mas de tentarmos coisas novas, e nisso poderemos, sim, estarmos errando de alguma forma.

    Em outras fases, temos que voar mais perto do mar, mesmo com o risco da maresia e ondas fortes, mas o recuo das reticências, principalmente em questões relacionadas ao inevitável, onde a serenidade pode estar num stop temporário, num voo rasante para o fôlego.

    Concluindo, não acredito no equilíbrio como um ponto do meio, e sim, que em determinadas ocasiões, e a vida vai nos mostrar sinais disso, teremos que voar mais alto do que pareceria o razoável, ou mais baixo, porque nem tudo é tão razoável e lógico como o caminho do meio; mas, sim, tudo é desafio, sempre, é sabedoria de interpretação e a situação nos dará as pistas.

    A vida não é uma leitura só, muitas vezes é Paulo Coelho, em outras Baudelaire.
    Você voaria na altura mediana se tivesse uma fase da tua vida comparada a um livro do Paul Rabbit? haha :)

    Beijos muitos!
    E ótimo fim de semana!
    Excelente texto, sem dúvida alguma!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah! Jaiminho!
      Adorei teus comentários por lá, em especial o da crônica.
      Grande lição para mim!
      Beijinhos!

      Excluir
    2. Cissinha, o equilíbrio não como um ponto mediano, mas um ponto onde a pessoa sinta segurança - senão você dança, como diz a música rsrs Muito obrigado pelo comentário riquíssimo! :) Bjs!

      Excluir
  5. Amigo Jaime,
    O mito é oportuno e bem pertinente à argumentação.
    Creio que o equilíbrio está no meio-termo, na média, na "aurea mediocritas" (a média de ouro) de Horácio. Mas, como muito bem diz o amigo, a tentação de ultrapassar os limites é muito grande, daí, a desobediência às regras do perfeito equilíbrio.
    A mitologia têm muito a nos ensinar. Não aprendemos porque somos mais instintos do que racionais.
    Portanto, quanto mais alto é o voo imprudente, maior será a tragédia, a queda.

    Li aqui um texto feito com grande maestria e com argumentação admirável.

    Abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bento, obrigado. A mitologia grega é fantástica e sempre nos ensina algo diferente. Gosto muito. Abs!

      Excluir
  6. OLá Prof. Jaime, boa noite!

    Muito oportuna a sua crônica, para mim que estou vindo lá do blog da nossa querida Cissa, em que ela aborda o conceito do filósofo Marshall Macluhan, sobre o mundo ter se tornado uma aldeia global. O conselho de Dédalo a Ícaro,continua, como você bem disse no seu texto,válido para todos, atualmente, porque o mundo globalizado, ou conectado exige tudo muito rápido, de todos nós.
    Os indivíduos não vivem mais no compasso do tempo certo, cronometrado, parecem estar a frente das horas, numa vida voltada
    para o trabalho, no relógio sempre contra as pessoas, pois o tempo está cada vez mais escasso, tudo tão instantâneo para ontem. E, não é de se admirar, a ausência de equilíbrio, pra se lidar com tantas situações ao mesmo tempo. Virtudes como a paciência, a serenidade, a tolerância de uns para com os outros, parecem utópicas, de impossível conquista, devido a correria a mil por hora.

    Gostei muito da sua crônica, porque vivo numa correria desenfreada no meu dia a dia, fazendo muitas coisas ao mesmo tempo.Ufa!

    Excelente final de semana, pra ti, Jaime!!

    Beijinhos da Lu...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Lu. E eu vivo nessa correria doida, fazendo um monte de coisas ao mesmo tempo também...rs Mas sempre há espaço para tentar conciliar as coisas e equilibrá-las. Bjs!

      Excluir
  7. Nós somos assim, não basta buscar aquilo que tomamos como metas - a liberdade - mas sim ir o mais alto possível. Aqueles que mantém os pés no chão e dão um passo de cada vez vão mais devagar mas chegam mais longe por que caminham por mais tempo.
    Abç

    ResponderExcluir
  8. Oi Jaiminho,

    Tudo bem? Engraçado ao ver a chamada, pensei em pulseiras do equilíbrio, aquelas em moda. Não é medicamento e não possui comprovação científica. Mas já vi declarações que houve interação com o corpo. E pergunto como uma pulseira conduz isso? Se equilíbrio é força energética posso conseguir visitando também religiões. Ou que sabe tomar remédio para equilibrar?

    Por sua vez, lembrei do mito de Tor, o martelo o conduzia a atrair chuva e ser o deus da fertilidade, conseguia o equilíbrio do bem e do mal. Mas para alcançar esse equilíbrio, os nórdicos não esperavam apenas o martelo de Thor e realizavam rituais.

    Na economia, o equilíbrio, consonância entre demanda e oferta, só pode ser alcançado quando as variáveis permanecem imutáveis em determinado período. Só que não bola de cristal e até Keynes chegas a duvidar do feito.

    Na vida há tantos fatores, como morte, perda de emprego, injustiça, solidão que acho que não conseguiremos chegar a totalidade do equilíbrio. Lembrei do conceito de entropia e ordem e desordem na física, mas nas vida prática estamos a mercê de forças naturais.

    Logo, penso que a expressão “Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar” já é a ponderação que o equilíbrio pode ser utopia. Sendo lógico apenas como conceito físico, mas preciso na mecânica.Se ele existisse não haveria desigualdade ou exclusão social. Então a relatividade é sempre um passo para compreendê-lo apenas como estágio e nunca como fim.

    Beijos e boa semana lindinho.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Luluzinha! Adorei as referências e os questionamentos. É sempre bom ver o que escrevi provocar tantos desdobramentos assim - desde mitologia, passando por Keynes até chegar à física quântica. Muito bom! Bjs!

      Excluir
  9. Olá, querido Jaime!
    Pois... Voar, voar, subir, subir e ir por onde for... [eu lembro sempre dessa música e claro do pára-quedas que caiu no rosto do Biafra hahahahaha]. A história de Ícaro é uma das mais bonitas da Mitologia, pois, não tão diferente das parábolas, está um belo ensinamento - voar com segurança, respeitando os limites, respeitando o próximo e a força da natureza.

    Beijos.

    T.S. Frank
    www.cafequenteesherlock.blogspot.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Querida Ticy, não dá para esquecer do Biafra hahahaha É uma bela - e trágica - história, sem dúvida. Bjs!

      Excluir
  10. Obrigada pela sua visita ao meu blog,vc escreve muito bem,parabéns a até breve!

    ResponderExcluir
  11. Parabéns pelo seu blog,vc escreve muito bem.Obrigada pela visita ao meu blog.Até breve!

    ResponderExcluir

Agradeço sua visita e o seu comentário! É sempre bom receber o retorno dos leitores.

Todas as opiniões são livres, porém não serão aceitos comentários anônimos e tampouco comentários ofensivos, discriminatórios de quaisquer natureza que não prezam pelos princípios da boa convivência e desrespeitam Direitos Humanos - o autor do blog reserva a si o direito de excluir comentários com tais temas e não se responsabiliza por interpretações deturpadas dos textos e ilustrações.

Volte sempre! =)

Tecnologia do Blogger.