Procurando respostas / Afeto

Dostoiévski, minucioso observador da condição humana, além de obras magníficas como “Crime e Castigo” e “O jogador” deixou-nos a seguinte pergunta em suas “Notas do Subsolo”: “O que se pode esperar do homem, sendo ele um ser dotado de características tão estranhas?”

Talvez por isso demos voltas e mais voltas tentando entender o que se passou no Rio de Janeiro, na escola Tasso da Silveira. No afã de encontrar respostas logo no primeiro momento, tentou-se de tudo: da psicologia às estatísticas, mais uma vez a espetacularização da violência fez-se presente e até a lamentável intolerância religiosa surgiu em meio ao turbilhão de informações desencontradas e especulativas.

E nenhuma resposta. O atirador era psicopata? Era um fanático religioso? Por que ele fez isso? Que motivos levaram um rapaz tímido e reservado a abrir fogo contra crianças dentro de uma escola? Teria sido mais um caso de Bullying? Novas – e tolas - especulações: a culpa é da internet, cuidado com os reservados e calados, são psicopatas!

“Onde estavam os professores e a direção da escola”, alguém ousou perguntar. Salvando a vida é uma boa resposta? Há anos, aliás, os professores denunciam a falta de segurança nas escolas – e o assunto é tratado sempre com desdém pelos governos. Quem está no magistério provavelmente já se deparou com alunos e não-alunos nas dependências da escola portando drogas e até armas. Enquanto “drogados e desordeiros” têm acesso à escola, tudo bem, ninguém se importa, afinal os professores que se virem para contê-los e educá-los; mas quando um potencial sociopata – ou portador de alguma psicopatologia - entra no prédio atirando para todos os lados, aí surge a ideia de “levantar o debate sobre a segurança nas escolas”.

(Que os meus colegas professores da escola Tasso da Silveira, ao retornarem às aulas, recebam todo o apoio psicológico e estrutural necessário para prosseguirem. Não esqueçamos que eles lidarão com alunos emocionalmente abalados – e eles mesmos, os professores, certamente estão abalados)

Foi em uma escola, poderia ter sido em um cinema – como já aconteceu – ou em um teatro, shopping, supermercado, outro local. E nenhuma resposta. Na verdade talvez encontremos respostas procurando no último lugar em que pensaríamos em investigar: dentro de nós mesmos, de nossa já citada condição humana.

Pensemos: onde foi parar o afeto nas nossas relações cotidianas? Escrevi este texto em outra ocasião e não o publiquei. Sei que ficará um tanto extenso, mas o publicarei assim mesmo, talvez seja válido neste momento – e mesmo que aparentemente não se encaixe no caso de Realengo, acredito que possa ser um complemento.


Afeto

Sem grandes rodeios, apresento as duas situações que motivaram escrever estas mal digitadas e ilustrarão melhor minhas pobres e quase desprezíveis ideias. Acompanhem.

1 – O professor estava dando sua aula em uma turma de ensino médio da rede pública quando, sem cerimônia, dois alunos adolescentes entram na sala e passam a conversar, em elevado tom de voz, com um colega que até então assistia tranquilamente à aula. Mesmo sem conhecer os dois alunos que invadiram sua aula – eram de outra turma – o professor chamou a atenção da dupla, sem rispidez ou sarcasmo. Como não “deram bola”, o professor foi até um deles e disse: “Meu jovem, por favor, depois você conversa com seu amigo, estamos em aula agora”. O professor terminou de falar e deu um leve toque no ombro do aluno, que esquivou em um gesto rápido, parou na frente do mestre, lançou-lhe um olhar raivoso e, imperativo, determinou: “Qualé, tira a mão de mim, fique na sua!”.

2 – Já ao final daquele turno, o professor, cansado, caminha pelo corredor da escola quase vazia. Havia apenas uma 5ª série, com crianças na faixa etária entre 10 e 12 anos. O professor passa em frente à sala e apenas observa a correria dos meninos e meninas e alguns acenam para o mestre, que retribui. Mas uma aluna, pequenina criança, se aproxima e dá um abraço no professor, que fica surpreso mas não se esquiva e tampouco repele a criança. “Tchau, teacher, bye bye!” e assim ela se despede.

Tenho reparado no dia a dia de uma cidade grande como a paupérrima e desigual Salvador de seus quase 3 milhões de habitantes uma agressividade crescente. Se você mora em uma capital ou cidade de grande porte provavelmente perceberá isso em um olhar mais atento. A impressão que se tem é que as pessoas andam armadas – não me refiro apenas às armas de fogo, mas um simples toque, um contato físico casual é recebido quase como uma ofensa ou pior: uma agressão. O que é muito estranho, pois em nossa formação histórica há marcantes influências indígenas e africanas, povos que cultivavam a coletividade, os gestos efusivos e a informalidade.

Não sou adepto de teorias que assemelham a auto-ajuda simplória como “terapia do abraço” e tantas outras; mas vale refletir onde estamos errando e como estamos caminhando para a impessoalidade e indiferença que destoam de nossa formação. Estamos vivenciando uma revolução na comunicação através de aparelhos e redes sociais absolutamente fantásticos, mas as tentativas de se comunicar com as pessoas através de olhares, gestos e até mesmo palavras fora de uma esfera virtual soam cada vez mais infrutíferas.

A afetuosidade nas relações vem sendo substituída pela frieza e pelo distanciamento entre as pessoas e, com isso, encontramos a carência que os adolescentes demonstram nas situações expostas aqui. Claro que estou falando de uma fase da vida em que a rebeldia e a inconstância são comuns, mas é assustadora a reação gerada por conta de um simples gesto. Se tal reação fosse restrita a uma fase como a adolescência, seria até compreensível; o problema é quando tal cenário é encontrado com muita frequência em faixas etárias ou classes sociais diversas.

O que fazer? Quem dera se eu tivesse uma boa resposta para tal pergunta neste contexto. Mas uma sugestão eu tenho: enquanto ainda não é tarde, cuidemos da afetividade e dos gestos com as nossas crianças. Não deixemos que se percam os gestos puros e simples como o de uma aluna de 10, 11 anos de idade que ainda abraça seus professores.


***

Virtudes – para mim, são – como afeto, tolerância, amor e humor estão em falta. Frei Beto, em um artigo publicado na Revista Caros Amigos ( perdoem-me, não lembrarei do título e da edição), falou sobre como estamos mais preocupados com os valores finitos ( bens de consumo como carros, computadores, celulares, etc) e desprezamos os chamados valores infinitos ( solidariedade, respeito, gentileza, etc).

Não sei se isso é uma resposta, mas não escrevi tudo isso com tal intenção. Apenas segui o conselho do nosso Dostoiévski, que foi citado na abertura desse texto e agora é citado no final: “ Escrevendo, talvez eu sinta de fato alívio”.

Ilustração: Dr.Fausto em seu gabinete, de Eugène Delacroix

8 comentários:

  1. Olá meu colega!
    Me reservei em não saber dessa tragédia. Poupei-me de tentar entender o que não quis saber.
    Estou cansada de ler noticias de morte dos nossos jovens. Não quero saber que nossos jovens estão matando outros jovens...
    Não quero deixar de acreditar no ser humano. Isso porque vários seres humanos dizem a mim, com gestos de afeto, o quanto sou importante para eles em cada um dos meus dias.
    Porém, há outros encurralados e usurpados da sua "dignidade" humana que, por desventura de suas vidas, não entenderam ou lhes roubaram o valor da VIDA e, perdidos no turbilhão de suas supostas "loucuras", já não sabem se são gente ou qualquer outra coisa.
    Por não haver valor próprio, também não há valor no outro, suponho. Então, qualquer coisa é melhor que olhar e se dá conta da sua "condição" humana.
    BUM.Foi-se!
    Um beijo em seu coração.
    Eu valido VOCÊ, por você ser um SER HUMANO maravilhoso.
    Maria Eneuma

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  2. Penso como você... A vida é difícil, cheia de espinhos, mas se torna melhor quando compartilhamos com as pessoas o nosso afeto.
    Grande abraço!

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  3. Olá, professor.

    Acho q não precisa se estar numa cidade grande para notar essa “frieza” nas relações humanas. Aqui no interior do mato não é muito diferente e acredito que seja assim onde quer que existam mais de duas pessoas. Notei isso há muito tempo, lá pela minha adolescência, quando certa vez esbarrei numa mulher de uns 40 anos dentro de uma galeria. Quando me virei e pedi desculpas, ela se assustou. E não pense q ela se assustou comigo (tava arrumadinha, maqueadinha e tal), o susto foi ao ouvir um pedido desculpa. Parece que algumas palavras e atitudes estão entrando em desuso.
    Pode parecer com meu comentário anterior (sou repetitiva), mas a sociedade está se exasperando, perdendo a sensibilidade e só parece acordar para o que está acontecendo quando acontece uma tragédia de grandes proporções. As nossas atitudes movem o mundo e ele é demasiado humano. Ainda bem que existem pessoas que insistem em nadar contra a maré.

    Bjohnny.

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  4. Que surpresa maravilhosa, minha companheira Eneuma!!! Que bom tê-la por aqui e espero que em breve comece a postar em seu blog!

    Pois é, eu até tentei não me envolver muito com esse fato, mas não deu. E podemos até comentar o fato na escola, mas em outra vertente, procurando disseminar uma cultura de paz - embora no dia a dia continuemos a presenciar agressões e posturas violentas, até mesmo dentro da escola. Tentar já é um caminho. Sei que o "apelo" do mundo é quase desigual, mas tentemos ao menos. É melhor que a omissão. Eu acho.

    Obrigado por suas palavras carinhosas! Adorei tê-la aqui! Saudades do pessoal e de você! Bj!

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  5. Jenny, o afeto é necessário nas relações. Não aquela "glicose" toda à la Gabriel Chalita, claro, mas a percepção que o outro está ali e é alguém e não "mais um qualquer" já faz uma diferença.

    Abraço!

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  6. Olá, moça de Cabo Frio!

    Hoje mesmo li na internet uma resenha sobre livro que relata a destruição causada pela bomba atômica em Hiroshima. Havia espaço para comentários e naquele local li coisas de assombrar: gente dizendo que o ocorrido em Hiroshima foi "normal" e "necessário", outros dizendo que foi algo "de guerra e guerra é assim mesmo". Ora, 10 milhões de anos de evolução para chegar a este ponto? Será que já perdemos mesmo a sensibilidade? Será que o caminho a ser percorrido daqui para a frente é o da intolerância e indiferença?

    Assustador, tudo isso.

    Bjk!

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  7. Grande Jaime! Há tempos eu escrevi (será que isso me alivia também?) sobre o fato de que uma metrópole geralmente é composta em sua maioria de pessoas que vem do interior à procura de oportunidades melhores. Pois bem, há um tempo não muito distante, estas pessoas influenciavam no modo de ser da cidade , criando uma atmosfera de um "interiorzão", com um certo calor humano, amabilidades e gentilezas. As coisas inverteram-se de tal forma de um tempo para cá que a cidade grande está fazendo brotar instintos de fera em todos indistintamente. É terrível esta trajetóra que estamos descrevendo nesse novo século )trevas novamente?) Sensacional o seu texto, meu amigo! Abraços. Paz e bem.

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  8. Cacá, certamente alivia - ou ajuda a. E esse dado que você me traz é preocupante, pois vivemos cada vez mais uma sociedade urbana. O campo é "esvaziado", a cidade mais do que antes é o "novo eldorado" e quem quiser sobreviver nela precisa jogar "pelas regras".

    E é curioso perceber como muitas pessoas gostariam de fazer o caminho contrário, ou seja, sair da cidade grande e partir pro interior. Mas pergunte se eles querem "abrir mão" do conforto. Conforto? Sim, a cidade oferece todo aquele "conforto" de ter bens de consumo "desejáveis" na esquina ou muito próximo de casa - conceito de próximo nas grandes cidades até vem mudando.

    Enfim, meu amigo, estamos passando por um período de transição/transformação que eu até diria ser interessante...mas também muito cruel.

    Abraço!

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