Lima Barreto (1917) explica o Brasil ( 2010)

(outra charge tosca do autor do blog. Mas o texto está bem melhor!)

Nestes tempos em que velhos e perigosos preconceitos ressurgem, tempos em que débeis mentais manifestam saudades da ditadura e filhinhos mimados da classe média encontram satisfação em agressões gratuitas ( ou não tão “gratuitas” assim), é bom resgatar um escritor desprezado no seu tempo por ser pobre, mulato e não estar nem aí para os rigores da linguagem “culta” e com a estética literária – e por conta disso suas tentativas de ingresso na Academia Brasileira de Letras foram frustradas.

Estou falando do carioca Afonso Henriques de Lima Barreto, ou simplesmente Lima Barreto, criador de clássicos de nossa literatura como “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “O Homem que sabia Javanês e outros contos” e a sensacional sátira “Os Bruzundangas”, onde ele descreve com ironia cortante e sarcasmo feroz a sociedade brasileira daquele tempo e que, veremos, pouca coisa mudou desde 1917.

E é aqui que eu saio de cena, dando espaço para o grande Lima Barreto em uma passagem memorável de “Os Bruzundangas”. Colocarei alguns trechos do capítulo XX, que leva o título “A província”. Deleitem-se e arrepiem-se com a atualidade de Lima Barreto e respirem aliviados por, finalmente, este blog postar um texto de qualidade.

A PROVÍNCIA

Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a província de Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a jóia da Bruzundanga! (...)

Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando, observei que podia levar mais longe. O traço característico da população da província do Kaphet, da República da Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores instituições, etc. etc. (...)

Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província a opinião de que a arte, sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chique, que os humildes, os médicos, os desgraçados, os feios, os infelizes não merecem atenção do artista, e tratar deles degrada a arte. (...)

O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.

Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.

A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o arbítrio; é a velha Rússia. E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas coisas de espírito.

Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai daqueles que o fizer! (...)

Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros julgarem o que é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de, 1881-1922. Os Bruzundangas.Porto Alegre: L&PM editora, 1998.

Concluído em 1917, “Os Bruzundangas” só foi publicado após a morte do escritor, em 1923. Como se vê, Bruzundanga em 1917 explica o Brasil em 2010.

Nem para Bruzundanga, nem para Maracangalha: www.twitter.com/jaimeguimaraess

7 comentários:

  1. É impressionante!!
    Super atual mesmo!
    Isso mostra como o ser humano não evolui moralmente.

    Sobre o post do mendigo, o poema que você colocou é exatamente o que senti!

    Tenha uma ótima semana!

    beijão!!

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  2. Se você não tivesse colocado as referências aí e dissesse que havia sido escrito esta semana, era de uma realidade atual incrível, para quem não conhece a obra do Lima Barreto, mas vive no Brasil. Sabe do que me lembrei também, atualíssimo? o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente de 1600 e pouquinho. Quando eu brigo com aqueles que dizem que estamos evoluindo, sempre recomendo que leiam textos antigos. Mas eles estão tão correndo para "evoluir" que não costumam ler nada que não esteja relacionado com o presente (e olhe lá). Abração, Jaime! Paz e bem.

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  3. Parabéns pela postagem

    Gostei do paralelo, feito no twitter, com as besteiras ditas por Roberto Freire. Este, por sua vez, representa o que há de mais nojento na política brasileira.

    Abraços

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  4. Infelizmente meu caro Jaime! Infelizmente o Brasil continua o mesmo...

    É isso, as efemeras necessidades daquilo que não tem importancia impera nessa republica dos bananas.

    XD abraços meu velho!

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  5. Provavelmente continua muito atual porque os não-chiques queiram ser chiques e fiquem se segregando. Não se unem, daí a elite agradece, né?

    O que esperar de um povo cuja maioria acredite que subir na vida é ser modelo, jogador de futebol, político ou celebridade de reality show?

    O que esperar da "elite" que recebe menos de dois salários mínimos, molha o pão no café e vota no Serra?

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  6. Foi uma proeza, Groo, descobrir este trecho tão atual e exato do momento, dentro de tantas outras que Lima Barreto pode nos proporcionar. Talvez nãoo se encaixasse tão bem. A mentalidade em vigor e promovida ainda é esta, mas tem gente que não quer mais isto. O problema é esse.

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