Entre arroz e divulgação: o valor de um escritor
O saudoso João Ubaldo Ribeiro, com sua
verve e estilo inconfundíveis, nos conta uma história interessante sobre o
jurista Rui Barbosa. O ilustre intelectual baiano era muito procurado para dar
seus pareceres em relação aos assuntos que dominava — e não eram poucos, pois o
homem era juiz, filólogo, escritor, tradutor e tantas outras habilidades.
Pois bem, a esposa de Rui, após
constatar que o marido fez mais um trabalho intelectual sem ter alguma
remuneração, chamava o visitante no canto da sala e pedia delicadamente que o
mesmo voltasse para combinar um pagamento: “O conselheiro come...”, dizia.
A partir desta história, João Ubaldo
desenvolve uma sequência de crônicas relacionadas ao ofício do escritor e a sua
remuneração. Vale a pena a leitura destes textos, onde encontramos o desabafo:
“As pessoas esperam que o escritor trabalhe de graça o tempo todo e ficam
grandemente ofendidas quando ele se recusa”.
Estas crônicas foram escritas na década de 1990[1] e continuam atuais. Quem trabalha com artes se depara o tempo todo com pedidos de “favores”. Músicos, desenhistas e escritores passam por poucas e boas — e têm muitas histórias para contar.
Conto uma que aconteceu há anos. Fui consultado para fazer algumas ilustrações a um projeto comercial
e o proponente queria me pagar com... arroz! Sim, é isso mesmo. O sujeito nem
era distribuidor ou plantador do cereal, mas talvez tenha imaginado que eu
aceitasse o pagamento em grãos, como nos tempos do escambo.
E sempre tem a turma que quer pagar com
ela, a famosa “divulgação”. Um amigo que é pintor já perdeu a conta das vezes em que ouviu a ladainha.
— Olha, vou postar a sua pintura,
mostrar para várias pessoas, o seu trabalho vai ser visto e divulgado, é o
melhor pagamento que um artista pode ter hoje em dia!
— Como você me descobriu?
— Ah, eu vi seus trabalhos no Google e
numa rede social.
— Pois é, já estou divulgado, tanto que
você chegou até mim.
De fato, os bancos ainda não aceitam a
modalidade “divulgação” para o pagamento das faturas e boletos.
O
disputado meio literário
Uma amiga escritora diz que escrever é a
parte fácil e prazerosa da coisa. A gente começa a entender melhor esta
afirmação quando parte para as etapas de publicação, distribuição e tenta
conseguir um lugar ao sol em eventos literários.
Sou iniciante nesta trajetória. Tem sido
uma jornada bonita, pois lancei meu livro na Biblioteca Central da Bahia, fui
entrevistado na Rádio Educadora, apresentei na Flipelô e ele foi parar na 71ª Feira
Literária de Porto Alegre. E neste caminho conheci muita gente interessante.
Nem tudo é um mar de rosas. É difícil
vender livros, já tomei calotes, um monte de “nãos” e senti as portas batendo
na cara. Sem falar nos silêncios eloquentes. Isso faz parte, até o Stephen King
passou por coisas do tipo ao ser rejeitado por mais de 30 editoras no início de
sua carreira.
Assim que surge uma oportunidade, também
aparece o pedido da “contribuição voluntária” em nome das artes e da literatura
— o orçamento tá apertado e tal, sabem como é. Tentei participar como autor em
roda de conversa numa dessas festas literárias na Bahia. Solicitaram proposta
orçamentária e efetivamente pedi apenas o custo do transporte. Foi negado sob a
justificativa de “recursos financeiros limitados” e por não haver mais espaço
na grade de programação, embora as conversas tenham iniciado com bastante
antecedência ao evento. Agradeci o contato e vida que segue.
No dia seguinte o perfil do município
nas redes sociais anunciava a presença de escritor famoso, youtuber, bandas, cantores e até político para a festa literária.
Bem feito pra mim: quem mandou falar em dinheiro para transporte? Talvez um
pagamento em arroz aumentasse as minhas chances.
Money
que é good, nóis num have
Não é raro, principalmente entre os
escritores iniciantes, surgir um sentimento de culpa por solicitar alguma
contrapartida financeira para ao menos compensar os custos de deslocamentos, alimentação
e hospedagem. Isso é o mínimo, mas ao cobrarmos é capaz de nos classificarem
como terríveis mercenários.
Curioso como o trabalho intelectual não
é reconhecido. Professores e professoras que o digam. Os escritores não fazem
exigências de rockstars em turnê: não
é algo que vai quebrar as finanças de munícipios e instituições, é apenas uma
valorização do seu ofício. Aquela história do “artista faminto” romantizada
como modelo de vida criativa desde fins do século XVIII há muito deveria ser
superada. Nem o Bukowski, que passou a maior parte da vida na dureza, acreditava
naquilo.
Existe, é claro, a velha tensão entre
arte e dinheiro. Muitos artistas têm medo de parecer “vendidos” se cobrarem
algum valor em suas artes. Além disso, há o receio em descaracterizar o seu
fazer e limitar a liberdade artística. Isso é discussão que vai longe e renderia
páginas e páginas.
Só não dá para apelar às musas por uma
cesta básica, transporte e boletos pagos. Com a minha sorte, é capaz de mandarem pacotes de
arroz e cobrarem taxa de entrega. No fim, a dona Maria Augusta Viana Bandeira é
que estava certa: o conselheiro come. E os escritores, também.
***
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