O fim da interpretação

A catástrofe climática no Rio Grande do Sul no corrente ano de 2024 comove todo o Brasil. De todas as partes do país as pessoas procuram ajudar da maneira que podem, revelando um senso de solidariedade que restaura alguma fé na humanidade.

Como acontece em casos de grande repercussão, o tema logo está na boca do povo e em todos os meios de comunicação, incluindo as redes sociais divididas entre relatos e imagens terríveis das inundações e as fake news detestáveis. Artigos de opinião são destacados nos jornais apontando a gravidade do que os cientistas há anos alertam sobre as mudanças climáticas e o aquecimento global devido à ação humana.

Os chargistas e cartunistas também contribuem para o debate na sociedade. Mas uma das charges chamou a atenção e causou polêmica.


Chargista de longa data, Jean Galvão publica suas charges desde 1999 no jornal Folha de S.Paulo e já foi premiado em várias ocasiões, como no tradicional Salão de Humor de Piracicaba. A charge “polêmica” de Jean sobre o Rio Grande do Sul mostra uma família com homem, mulher e duas crianças se protegendo de uma inundação sobre o telhado da própria casa. A menina diz ao garoto: "Não chora, vai alagar ainda mais...".

A reação à charge nas redes sociais não foi das melhores. O chargista não apenas foi “cancelado”, como sofreu ataques de ódio e ameaças violentas dos arautos digitais da virtude, que enxergaram “deboche” por parte do artista. Acuado, Jean excluiu a charge do seu Instagram e no lugar publicou um texto pedindo desculpas, explicando que o objetivo da charge era provocar reflexão e as lágrimas demonstrariam uma metáfora sobre a dor das vítimas e o desespero da situação.

A interpretação em baixa
Como professor e chargista amador, eu trabalho bastante em sala de aula com este gênero textual híbrido, ou seja, que combina a linguagem verbal e a não verbal. A charge não é necessariamente um gênero humorístico, ela também pode trazer críticas sociais. Sempre explico aos alunos que é preciso levar em consideração alguns fatores importantes ao analisar uma charge.

O primeiro deles é a intencionalidade do autor. Qual foi a intenção do artista ao fazer a charge? Aqui entram habilidades e competências como inferência, interpretação de informações, análise de dados e hipóteses. No caso da charge de Jean Galvão, em nenhum momento se percebe a intenção de debochar ou tratar com desdém as vítimas da catástrofe no Rio Grande do Sul. Há quem acuse a charge de insensibilidade e outros apontam para problemas no texto ( "Não chora, senão vai alagar ainda mais", como defenderam alguns), mas não há nenhum elemento "jocoso" no desenho.

O segundo ponto é o uso de figuras de linguagem. Entre os chargistas, é muito comum o uso da ironia, metáfora e também da hipérbole. Esta última, para quem não lembra, é o exagero proposital para enfatizar uma situação, tornando-a mais expressiva ou mesmo dramática. “Estou morto de cansaço!” é um exemplo de hipérbole. Quando o chargista desenha uma das crianças chorando e a outra dizendo que suas lágrimas podem elevar o volume das águas, temos um exemplo desta figura de linguagem quanto ao exagero, ao lado da já citada metáfora.

A charge acabou chamando a atenção para um problema sério que já vem ocorrendo há algum tempo: a dificuldade de interpretação seja de textos, imagens e canções. A revolução tecnológica proporcionou a abundância de informações e estímulos visuais, e saber como lidar com tudo isso é o nosso grande desafio. Através dos smartphones, a leitura é fragmentada e superficial, além de descartável em questão de segundos. Neste cenário, a concentração e imersão no objeto de leitura tornam-se muito difíceis.

O leitor atual é muito diferente do leitor de gerações anteriores. Com os hábitos digitais e sua aceleração, a leitura torna-se apenas uma “passada de olhos” por textos de diferentes gêneros, sem aprofundamento do que se lê. Para a neurocientista Maryanne Wolf, os jovens (e não apenas eles, friso) estão desenvolvendo uma “impaciência cognitiva” que não favorece a leitura crítica. E complementa: "Deixamos de estar profundamente engajados no que estamos lendo, o que torna mais improvável que sejamos transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos de outra pessoa”.

Destaquei o trecho da fala de Wolf porque isso ajuda a entender a dificuldade de muitas pessoas diante de uma charge simples e outras manifestações artísticas. Hoje, é preciso ser explícito e até mesmo simplista nas produções, deixando de lado figuras de linguagens e demais sutilezas, sejam elas poéticas ou não. A contemplação e análise não cabem neste mundo em que tudo se transforma em mercadoria para ser consumido e descartado rapidamente.

Sabemos que estamos na pior quanto até uma escritora recém-eleita para a Academia Brasileira de Letras junta-se à turba linchadora de canceladores. Chargistas não estão imunes às críticas, é natural que elas ocorram; mas quando a coisa chega ao ponto em que um artista precisa excluir seu trabalho devido às interpretações deturpadas e reações ferozes, é sinal de que nos perdemos totalmente em uma internet cada vez mais sufocante e castradora para as artes.

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4 comentários:

  1. Como vai Jaime? Tempos complexos demais para a interpretação de texto não é verdade? E pior, agora até dificuldade das pessoas em interpretarem uma simples e salutar charge...Misericórdia, onde vamos parar?
    Mas antes preciso ressaltar a sua precisão na escrita, é maravilhoso ler como você discorre. As pessoas precisam ler mais, se concentrarem melhor no que estão fazendo. A meu ver, as redes sociais vazias e perversas, transformaram todos em uma massa de condução onde o que menos se vê é cérebro...
    Lamento muito pelo chargista que foi tão inteligente e preciso em seu trabalho mas foi " cancelado". No entanto, ter a necessidade de apagar o post em razão da ferocidade dos comentários que sofreu, é mesmo o fim da picada.
    Mas em contrapartida eu fico mais aliviada que nos blogues nós conseguimos encontrar uma luz no fim do túnel. Grata por ter atualizado o seu trabalho amigo! Não fique muito tempo sem escrever ou postar, seu trabalho se faz necessário e urgente nos tempos atuais.
    Abraços e uma ótima semana, na medida do possível!!

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    1. Adriana, muito obrigado por suas palavras! Sim, nos blogues ainda conseguimos encontrar momentos de lucidez em meio a toda essa loucura digital.

      Em meio à correria cotidiana, tenho encontrado pouco espaço de tempo para publicar aqui. Mas não abandono. :-)

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  2. Esse livro da Maryanne Wolf é incrível, porque mostra exatamente o que acontece com as pessoas incapazes de fazer leituras profundas e daí tirar suas conclusões. Elas vão na onda. Quem está em sala de aula hoje em dia vê que o futuro é bem mais sombrio do que os especialistas querem nos fazer crer.

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    1. Verdade, Capitã: quem está na sala já tem uma antevisão de um futuro bastante complicado. :-(

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