O tempo e o rock

O tempo e o rock

A banda inicia os acordes do grande sucesso do cantor, o maior hit da carreira. O público logo reconhece a música e vibra com gritos e aplausos. Mas o vocalista titubeia, erra o tom da canção e pede para a banda recomeçar. Em nova tentativa, o cantor falha mais uma vez. Algo está errado, ninguém parece se entender no palco e a competente banda simplifica os arranjos musicais para o vocalista finalmente conseguir cantar, aos trancos e barrancos.

Em outro show, uma banda afiada com um guitarrista exuberante começa a tocar o riff de um dos grandes sucessos do grupo e o público vai à loucura. O vocalista ícone do rock e um dos maiores frontman da história começa a cantar, porém o vocal rasgado e potente característico deste artista dá lugar a ganidos que em alguns momentos mal se percebe que há voz ali, mesmo com o visível e dedicado esforço do ídolo musical.

Estes foram momentos dos shows do britânico Billy Idol e do norte-americano Axl Rose na edição do Rock in Rio 2022. Billy Idol tem 66 anos e está na estrada do rock e punk rock desde meados da década de 1970; Axl Rose chega aos 60 anos e está com sua banda Guns n´Roses na cena musical desde a década de 1980. Ou seja, ambos têm uma trajetória respeitável de sucessos e prêmios em suas longas e bem sucedidas carreiras.

Rock é atitude, mas também imagem. O apelo estético é fundamental para a solidificação do ícone, do mito. Quando pensamos em Elvis Presley, logo nos lembramos do belo rapagão de topete deslumbrante que rebolava freneticamente nas apresentações escandalosas (para a época) na TV americana — quase ninguém prefere lembrar do Elvis obeso, ofegante e suando em bicas nas apresentações metido em um traje apertado e desconfortável no fim de sua carreira. A extravagância de Freddie Mercury, as mutações de David Bowie, as máscaras do Kiss, a teatralidade de Alice Cooper, a energia sensual de Mick Jagger: são características visuais associadas a estes ícones do rock e elas se transformaram em pôsteres, camisetas, toys, etc.

A imagem que todos temos de Axl Rose é daquele rock star de corpo esguio com uma bandana colorida e longos cabelos ruivos fazendo a “dança da serpente” enquanto distribui seus vocais turbinados nas apresentações cheias de energia (e polêmicas)  mundo afora. Este era o Axl Rose de 30, 40 anos atrás e esta é a imagem e performance que a maior parte das pessoas ainda quer ver nos palcos. Limitações e demonstrações diferentes da imagem consolidada são vistas como “fracasso” e recomendações de “aposentadoria”, como alguns críticos musicais (e não musicais) escreveram logo após o show do Rock in Rio 2022.

Mas você está mais velho/com menos fôlego... 

O filósofo latino Sêneca escreveu, em suas cartas, uma passagem interessante para refletirmos:

Mesmo quando estamos crescendo, nossa vida está em declínio. Perdemos nossa infância, nossa adolescência e nossa juventude. (...) Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu.

A passagem do tempo é inevitável e o declínio de uma vida, independente de como foi conduzida, é natural.

A música “Time”, do Pink Floyd, também fala sobre estes efeitos do tempo: “Você é jovem e a vida é longa (...) e então, um dia, você descobre que dez anos ficaram para trás”. Isso é particularmente muito difícil de aceitar em uma sociedade imagética em que a juventude (ou a aparência jovial) é a norma e cobrada com extremo rigor pelas pessoas. Não à toa os procedimentos estéticos e produtos que prometem rejuvenescimento fazem tanto sucesso e não há crise neste setor. A promessa da mitológica Fonte da Juventude hoje é encontrada nos endereços das clínicas de estética. Se por um lado faz bem para a autoestima, por outro pode se transformar em crise que leva a estados de ansiedade e depressão na busca por uma eterna juventude ilusória.

No cenário artístico, em que a imagem é importante, saber lidar com o declínio não é nada fácil. Para alguns a passagem do tempo é mais suave, para outros é cruel. Roger Waters, do Pink Floyd, está beirando os 80 anos e ainda roda o mundo com turnês gigantescas e muita vitalidade no palco; Bruce Springsteen já está com seus 72 de idade e energia para cantar e tocar seus grandes sucessos. Obviamente o estilo musical, técnica e comportamento ao longo da carreira ajudam a entender como alguns envelhecem bem e outros, mal. Ozzy Osbourne achou que morreria aos 40 anos por ter seguido à risca a tríade “sexo, drogas e rock n´roll”; Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones, é um caso a ser estudado pela ciência. Continuam na ativa, embora sabiamente reconheçam até onde podem ir — e, cá entre nós, não precisam provar mais nada a ninguém.

It´s my generation, baby!

Em uma rede social, Axl Rose pediu desculpas pelo seu desempenho no show do Rock in Rio e explicou estar um tanto indisposto. Sabe-se que o vocalista já havia cancelado um show na Inglaterra em 2022 por perder a voz e após isso contratou um técnico vocal para auxiliá-lo na turnê; o guitarrista da banda de Billy Idol revelou que os músicos e o cantor tiveram problemas técnicos durante a malfadada apresentação. Dificuldades técnicas à parte, é preciso aceitar que estes ícones não são mais os mesmos. Perpetuar uma imagem que tínhamos há décadas só atrapalha o que realmente importa: aproveitar o show e as canções clássicas. A verdade é que estamos assistindo os últimos momentos de grandes ícones do rock e aparentemente não há substitutos em termos de atitude e carisma — até porque são outros tempos, mas essa é outra história.

Pode ser frustrante para muita gente assistir a uma apresentação do artista favorito e vê-lo em declínio ou aquém do que poderia fazer. Até mesmo os artistas do grupo “envelheceram bem” em breve não conseguirão mais se apresentar em um bom nível. O guitarrista Eric Clapton afirmou que "ficar velho é duro, é difícil tocar guitarra" - e o fã pode até conservar em sua memória afetiva uma imagem nostálgica do ídolo, mas precisa se conformar que o guitar hero vai tocar em ritmo mais lento, o vocalista não alcançará mais os agudos, etc.

E é difícil também falar em "aposentadoria" para quem viveu um estilo de vida tão intenso carcaterizado em celebrar a vitalidade e juventude, como cantou (e ainda canta) a banda The Who há 50 anos: "espero morrer antes de ficar velho". Rita Lee afirmou que com a idade avançando surgem reclamações de "velho rabugento", mas ao subir no palco "acaba tudo (...) palco é realmente outro planeta". Acredito que condenar e exigir a retirada do artista dos palcos é uma espécie de sentença de morte.

O ideal seria que músicos aceitassem e compreendessem a passagem do tempo para que buscassem atalhos, alternativas e adaptações para os limites e marcas inevitáveis que o envelhecimento causará. E os fãs deixarem de lado expectativas nostálgicas e encararem a realidade: lá está o grande ídolo, porém não é mais o mesmo do videoclipe e da fotografia imortalizada na estampa da camiseta.

Artistas e público, se entenderem isso, só têm a ganhar e aproveitarão a arte. Quando os primeiros acordes de “Welcome to the jungle” tocaram no show do Guns n´ Roses e a banda executou com maestria este clássico do rock, ninguém ligou se a voz do vocalista estava assim ou assado: a magia da canção e a entrega dos músicos levantaram o público, que se divertiu e cantou junto com toda a vitalidade que se espera neste tipo de apresentação.

E não é isso o que todos queremos de um show de rock, afinal?


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4 comentários:

  1. Jaime, que texto espetacular, que narração maravilhosa das melhores apresentações dos ídolos do rock no último festival. Sim, eles não estão mais jovens e o que isso importa? O que precisamos entender, é que eles chegaram vivos até aqui (mesmo com a vida pregressa do passado- ponto para Keith Richards que realmente é um inacreditável estar vivo e tão bem ) e diante da idade, estão sendo guerreiros e ainda encarando os palcos e as turnês!

    Fico arrasada com as críticas que os "pretensos" fãs do Guns N' Roses fizeram ao Axl Gente, nós vimos como ele está se esforçando, fazendo o melhor dele.
    Billy Idol também! Quando vi a apresentação dele, logo percebi que algo não estava bem no palco, seja os equipamentos ou a comunicação. Mas o pessoal já foi comentando que ele estava "gagá" e pasmem, bêbado. Fico horrorizada com o seu humano, sabe Jaime, pois deles só vem acirradas críticas, antes de saber o que realmente está acontecendo!
    E para comprovar com fatos da minha vida real , de como as pessoas estão intolerantes e amargas, eu tenho um blog onde compartilho imagens de paisagens do mar e das montanhas da minha terra capixaba. Assim que compartilho sempre vem "capixabas" dizendo que o mar é cheio de esgoto, combustível de embarcações, de que na praia só há drogados, mendigos e vandalismo... E não é assim.
    São eles que estão de olhos vendados e só enxergam coisas ruins, só criticam e pasmem, nada fazem para melhorar, apenas soltam suas farpas para nos ferir...
    Então amigo, ainda bem que tem o seu blog para falar o que é verdadeiro, o que realmente importa!
    Grata por esse texto restaurador!!
    Tenha uma maravilhosa semana!!

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    1. Isso mesmo, Adriana!!! Que bom ler algo tão lúcido. E sim, as pessoas andam muito amargas mesmo... Abraços e bom domingo!

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    2. Marina, obrigada pelo carinho!! Tenha um domingo maravilhoso!

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  2. Jaime, bom dia!
    Um texto irretocável.
    As pessoas precisam mesmo entender que o tempo passa, a gente vai tendo mais limitações e obviamente uma banda com tanto tempo de estrada não vai ter o mesmo desempenho do início de carreira. Gostei muito da frase no início do texto: "Não é a última gota que esvazia o relógio de água, mas tudo o que anteriormente fluiu”", pois é a realidade.
    Um bom domingo!

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