A pandemia e o choro

A pandemia e o choro

Pelo nome, eu imaginei que seria grego, mas o homem à frente da Organização Mundial de Saúde (OMS) é etíope, biólogo, doutor em Saúde Comunitária e mestre em Imunologia. Cabe ressaltar: todos os títulos acadêmicos são reais, para inveja de ministros ou quase-ministros do governo brasileiro.

Tedros Adhanom Ghebreyesus é o diretor da OMS e sua presença é constante nos noticiários devido à pandemia do coronavírus. A organização é um braço da ONU (Organização das Nações Unidas) e auxilia os países membros na pesquisa e fortalecimento dos serviços de saúde pública, estabelecendo a cooperação global para estudos científicos e políticas para a área. Se já não é algo simples coordenar uma organização que atua em 194 países em condições normais, o que dirá em uma pandemia de doença até o momento sem vacina e em constantes estudos sobre a sua natureza de transmissão.

Uma doença cujo vírus já infectou até a metade de julho mais de 12 milhões de pessoas no mundo, tirou a vida de 500 mil seres humanos e encontra-se absolutamente fora de controle em países como Estados Unidos e Brasil, apenas para citar os dois maiores em extensão territorial e população. A OMS, os médicos, os infectologistas, as enfermeiras, os pesquisadores, a imprensa séria e todo o mundo de bom senso recomendam todos os dias as medidas para conter o avanço da transmissão do vírus. Use máscara, lave as mãos com água e sabão, mantenha o isolamento e distanciamento social e físico. Desde março ouvimos isso. E mesmo assim o vírus avança. E mesmo matando, a doença é subestimada por muita gente.

Tedros apareceu novamente na TV durante um pronunciamento. O diretor da OMS não apenas apelou para que as pessoas se unissem na luta contra o coronavírus, mas chorou. Chorou por um mundo tão dividido, chorou pela tragédia que tem ceifado vidas e mais vidas. E, emocionado, lançou a pergunta de 1 milhão de dólares:

Por que é tão difícil para os humanos se unirem, para lutar contra o inimigo?

Ah, meu caro Tedros, talvez nunca tenha feito a leitura de “Demian”, do Hermann Hesse. Quem sabe ali poderia encontrar algumas possíveis respostas sobre “esses homens que tão temerosamente se congregam estão cheios de medo e maldade, nenhum se fia no outro”. Mas entendo o seu desabafo e faço o mesmo questionamento. Eu tenho um exemplar de Demian todo grifado e rabiscado, um pecado para muitos amantes dos livros. Pensei em reler outros trechos para encontrar algo a acalmar o coração, porém fiz uma coisa tola e não recomendada para qualquer pessoa que queira manter a sanidade em dia: acessei os comentários sobre a notícia nas redes sociais.

Foi a minha vez de chorar. De desespero. Não apenas é um mundo dividido, mas um mundo em que a ignorância emergiu com força e ostentada orgulhosamente por muitas pessoas. Ignorância gera desinformação e com isso temos a desunião - peço desculpas pelo eco. Obviamente que redes sociais constituem um recorte muito pequeno e particularizado para certas conclusões, mas muitas pessoas ali são reais e, perdão em insistir, a desinformação é um problema sério que custa vidas. Tais ideias são compartilhadas por essas redes e aplicativos de mensagens.

Tem gente que recusa usar máscara;
Tem gente agredindo verbal e fisicamente quem solicita o uso de máscara;
Tem gente que organiza festa para provar que o vírus não existe.

Eis algo que eu não consigo entender: houve um tempo em que demonstrar ignorância era motivo de vergonha e escárnio; hoje, pelo contrário, temos chefes de estado que são idiotas arrogantes e ídolos de milhares de pessoas. Donald Trump e Jair Bolsonaro são dois exemplos que logo saltam à mente. Há outros, claro, porém cito-os porque são símbolos maiores da Idiocracy moderna, duas pessoas que apostam no caos e na desinformação para permanecerem no poder e sustentarem suas legiões de fanáticos seguidores.

Eu já comentei outras vezes que no futuro, se sobreviver, o fato mais marcante da “Pandemia de 2020” para mim será o desprezo pela vida humana. “Temos que salvar a economia!”, afirma o sujeito sem economias e fiel seguidor do coach financeiro de rede social com vídeo motivacional. É um grande mistério como salvar alguma coisa estando morto, doente ou com medo de se infectar com uma doença sem vacina. Seriam mais sinceros se afirmassem “Sacrifiquem-se em nome da economia e do sistema!”. E assim as vidas dos pobres, dos negros, dos indígenas e demais marginalizados recebem somente um grande “E daí? Lamento, quer que eu faça o que?”. Não que as elites do planeta e uma deslumbrada classe média tenham se importado algum dia com a vida das pessoas fora de suas bolhas, mas isso nunca foi compartilhado com tamanha naturalidade e até orgulho. É assustador.

Se bem que eu não deveria me surpreender. Durante a 2ª guerra mundial o escritor Henry Miller perambulou pelos Estados Unidos, conhecendo gente e lugares perdidos no mapa. Suas reflexões foram publicadas em livro (“Pesadelo refrigerado”), onde ele escreveu: “Quando você sabe do que os homens são capazes, não se surpreende nem com o sublime, nem com o brutal. Parece que não há limites em nenhuma das suas direções”.

Tinha razão, Henry. É que sou um tanto idealista, confesso. Isso não me torna, no entanto, um ingênuo. Até por dever de ofício, se eu não sustentar algum idealismo e um fio de esperança, jamais poderei entrar em uma sala de aula novamente. E sei que Tedros, de certa forma, também pensa assim. Por isso o choro. Diante de todo esse cenário é natural fraquejar, sucumbir à resignação, mandar tudo às favas e cada um que se vire como puder.

Tiro os olhos da tela do monitor em que digito essas palavras, suspiro e passeio por minha modesta estante de livros. É como se quisesse encontrar alguma resposta, alguma inspiração, algo que não sei bem o que. E encontrei. Encontrei o título de um livro do poeta e cronista Affonso Romano de Sant´Anna. Um título com afirmação que servirá a todos nós em um futuro próximo, que já choramos, fraquejamos, xingamos e estivemos prestes a mandar tudo para o inferno:

Fizemos bem em resistir.

Um comentário:

  1. Gostei muito de seu post, lúcido como sempre!
    Desde que a quarentena começou, tenho tido muita, muita raiva com as situações que apresentastes tão bem neste texto. Expressastes muito bem o sentimento de muita gente, sério.
    E enquanto isso, vamos continuando em casa, continuando esta quarentena que só se estende desta forma porque tanto governantes quanto governados não querem colaborar.
    (Citei este seu post em um que escrevi no meu bloguinho, com link para cá, ok?)
    Abraços!

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